ARTIGO ORIGINAL
Teores de ferro, fósforo e potássio na Moqueca Capixaba e sua viabilidade na dieta de doentes renais crônicos
Iron, phosphorus, and potassium levels in “Moqueca Capixaba” and its viability in the diet of chronic kidney disease patients
Alan Diniz Ferreira1, Kelly Ribeiro Amichi2
1Faculdades Integradas de Aracruz (FAACZ), Aracruz, ES, Brasil
2Centro Universitário Salesiano (UniSales), Vitória, ES, Brasil
Recebido em: 16 de janeiro de 2024; Aceito em: 30 de abril de 2024.
Correspondência: Alan Diniz Ferreira, alandiniz89@gmail.com
Como citar
Ferreira AD, Amichi KR. Teores de ferro, fósforo e potássio na Moqueca Capixaba e sua viabilidade na dieta de doentes renais crônicos. Nutr Bras. 2023;22(6):619-631. Doi: 10.62827/nb.v22i6.wg65
Introdução: A Moqueca Capixaba (MC) é patrimônio gastronômico e cultural do Espírito Santo, mas sua inclusão na dieta de doentes renais crônicos (DRC) requer considerações quando há necessidade de restrições alimentares, tendo em vista a ausência de estudos quantitativos de micronutrientes. Objetivo: Avaliar o teor de ferro (Fe), fósforo (P) e potássio (K) na MC e fornecer informações essenciais para a adequação precisa da dieta de pacientes DRC, com a inclusão ou exclusão da preparação. Métodos: Estudo experimental quantitativo, empregando análise de composição química por espectrometria de emissão óptica por plasma acoplado individualmente para quantificar os minerais Fe, P e K em diferentes preparações da MC. Resultados: O tipo de panela utilizada, isoladamente, não afetou as concentrações de K e Fe, mas influenciou as concentrações de P. O tipo de peixe utilizado teve um impacto em todos os elementos estudados. Há uma interação significativa entre o tipo de panela e o tipo de peixe na concentração desses elementos. Conclusão: Recomenda-se que o consumo da MC seja individualizado, devido ao seu elevado teor de fósforo. Não há contraindicações de consumo relacionadas ao consumo de ferro ou potássio com base nesta análise, no entanto, sugerimos que novos estudos explorem mais a fundo os aspectos nutricionais da MC.
Palavras-chave: alimentação regional; composição de alimentos; doença renal crônica; ciências da nutrição.
Introduction: The Moqueca Capixaba (MC) is a gastronomic and cultural heritage of Espírito Santo, but its inclusion in the diet of chronic kidney disease (CKD) patients requires considerations when there is a need for dietary restrictions, given the absence of quantitative studies on micronutrients. Objective: To evaluate the content of iron (Fe), phosphorus (P), and potassium (K) in MC and provide essential information for the precise adaptation of the diet of CKD patients, considering the inclusion or exclusion of this preparation. Methods: A quantitative experimental study employing chemical composition analysis by individually coupled plasma optical emission spectrometry to quantify the minerals Fe, P, and K in different preparations of MC. Results: The type of pot used alone did not affect the concentrations of K and Fe but influenced the concentrations of P. The type of fish used had an impact on all the studied elements. There is a significant interaction between the type of pot and the type of fish in the concentration of these elements. Conclusion: It is recommended that the consumption of MC be individualized due to its high phosphorus content. There are no consumption contraindications related to iron or potassium based on this analysis; however, we suggest that further studies delve deeper into the nutritional aspects of MC.
Keywords: regional cuisine; food composition; chronic kidney disease; nutritional sciences.
A Moqueca Capixaba (MC), emblemática do Espírito Santo (ES), é considerada um patrimônio gastronômico e cultural, desempenhando um papel central nas reuniões familiares e com amigos, refletindo as identidades, diferenças e subjetividades moldadas em torno da alimentação [1,2,3]. A Lei Estadual 10.747 de 16 de outubro de 2017 [4], protege a MC e estabelece critérios específicos para sua preparação, destacando a ausência de ingredientes como azeite de dendê, leite de coco e pimentão, que a distinguem de outras versões regionais [5].
Trata-se de um prato à base de peixe cozido em azeite, semente de urucum, tomate, cebola, alho, sal e coentro, é preparada em panelas de barro feitas à mão pelas paneleiras de Goiabeiras, sendo reconhecida como patrimônio cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Essa iguaria tem raízes na herança indígena, com seu preparo caracterizado pelo cozimento sem água (daí o nome “moquecar”), apenas com vegetais e frutos do mar, realçados pela tintura de urucum [6].
Apesar de ser um prato típico que representa a culinária e a cultura local, é fundamental considerar as restrições e adequações alimentares individuais, particularmente em relação à Doença Renal Crônica (DRC). A DRC é uma condição que envolve a perda progressiva e irreversível da função renal, muitas vezes exigindo terapia renal substitutiva (TRS) como a hemodiálise ou diálise peritoneal [8].
É diagnosticado com DRC qualquer indivíduo que, independentemente da causa, apresente taxa de filtração glomerular (TFG) < 60 mL/min/1,73m2 ou a TFG > 60 mL/min/1,73m2 associada a pelo menos um marcador de dano renal no parênquima por pelo menos 3 meses. A DRC apresenta-se em 5 estágios, sendo os estágios 3 ao 5-D onde a intervenção nutricional se torna mais importante. Entre os estágios 3 e 5 adota-se o tratamento conservador, no estágio 5 o paciente pode evoluir com necessidade de TRS, constituindo o estágio 5-D [9].
A dieta dos pacientes com DRC varia conforme o estágio da doença e comorbidades associadas, podendo se tornar restritiva e monótona, somando isso a falta de informações sobre a composição mineral de alimentos, há impactos na adesão do paciente ao tratamento [10].
O número crescente de pacientes com DRC, conforme indicado pelo Censo Brasileiro de Diálise Crônica de 2021[11], reforça a importância da adequação dietética, especialmente no controle do consumo de fósforo e potássio, adequação do consumo de ferro e energia. Muitos desses pacientes, frequentemente idosos, têm forte conexão com suas tradições culinárias e comidas típicas, como a MC.
Até o momento, não existem estudos que analisem, por métodos físico-químicos, o teor de ferro (Fe), potássio (K) e fósforo (P) na MC. Este estudo visa fornecer aos nutricionistas informações relevantes para a adequação da dieta de pacientes com DRC, considerando o valor real de consumo de Fe, K e P na MC, auxiliando na tomada de decisões quanto à sua inclusão ou exclusão na dieta desses pacientes.
Este estudo tem caráter experimental quantitativo e se baseia na análise da composição química para a quantificação dos minerais Fe, K e P em diferentes formulações da MC. Um total de seis preparações foram realizadas para esta pesquisa, sendo três delas com 3 variedades de peixes utilizando a panela de barro e as outras três com as mesmas variedades de peixes utilizadas na MC, todavia preparadas em panela de vidro, estabelecendo assim um grupo de controle.
No contexto deste estudo, e para fins de valorização da cultura e culinária capixaba, as panelas de barro utilizadas na elaboração da MC foram adquiridas de uma artesã devidamente certificada e membro da Associação das Paneleiras de Goiabeiras, em Vitória-ES. Os peixes utilizados foram adquiridos em estado fresco na tradicional vila de pescadores em Manguinhos, Serra-ES e as sementes de urucum foram obtidas no tradicional mercado localizado na Vila Rubim, situada em Vitória-ES.
Os ingredientes de origem vegetal, incluindo tomate, coentro, cebola e limão, bem como o azeite e o óleo de milho, foram adquiridos em um estabelecimento supermercadista localizado no município de Serra-ES. Tais ingredientes foram transportados em condições de temperatura ambiente até o Laboratório de Técnica e Dietética do Centro Universitário Salesiano de Vitória - UniSales, onde foram devidamente preparados para uso no experimento.
Foram empregados três tipos distintos de peixes na elaboração das moquecas, a saber: cação, dourado e badejo. Os valores (expressos em reais - R$) correspondentes aos peixes foram escolhidos de forma a atender às diversas faixas de preço existentes no mercado de pescado. Observou-se que o cação é o peixe de menor custo, o dourado possui um preço médio e o badejo é o mais caro entre eles.
A seleção dos peixes foi realizada de forma arbitrária, com base em suas características comerciais, considerando o peso do pescado sem a inclusão de cabeça, vísceras e nadadeiras ventrais, dorsais e caudais. O material utilizado foi acondicionado em caixas térmicas com controle rigoroso de temperatura, mantidas na faixa de +2 a +8°C durante o transporte até o laboratório.
A mensuração dos ingredientes foi conduzida empregando uma balança eletrônica digital de elevada precisão, da marca Filizola, modelo BP15, devidamente certificada pelo INMETRO. No que se refere aos ingredientes em estado líquido, utilizaram-se colheres de medidas padronizadas para determinar os volumes empregados.
A tintura de urucum foi confeccionada empregando-se uma quantidade de 100 gramas de sementes de urucum, submetidas a aquecimento em 300 mL de óleo de milho, em uma panela de barro. Aqueceu-se essa mistura em fogo médio por um período de 10 minutos. Posteriormente, extraiu-se um volume de 20 mL da referida tintura, conforme indicado na Tabela 1.
A Tabela 1 detalha os valores de peso e volume para cada um dos ingredientes utilizados no estudo. No caso do grupo controle, uma panela de vidro foi empregada, seguindo rigorosamente os mesmos procedimentos delineados para a preparação da MC.
Tabela 1 - Pesos e volumes dos ingredientes utilizados na Moqueca Capixaba
Ingrediente |
Peso (g) / Volume (mL) |
Peixe (peso médio) |
850 |
Alho |
30 |
Coentro |
75 |
Tomate |
300 |
Cebola |
200 |
Sal |
5 |
Limão |
25 |
Tintura de Urucum |
20 |
Azeite de Oliva |
25 |
Fonte: Autores, 2023.
O pescado foi condimentado com sumo de limão e sal, e deixado em repouso por um período de 30 minutos. Uma panela de barro de tamanho médio foi aquecida, e nela foram acrescidos o azeite e o alho. Posteriormente, os ingredientes foram dispostos em duas camadas: na primeira, foram colocados a cebola, o tomate e o peixe, enquanto na segunda camada foram dispostos o tomate, a cebola e o coentro. A tintura de urucum foi então incorporada. O tempo de cozimento foi de 25 minutos para a panela de vidro, utilizada no preparo do grupo controle, e de 40 minutos para a panela de barro. Em todas as preparações, manteve-se o fogo em intensidade média.
Após a conclusão da preparação das moquecas, o conteúdo de cada uma delas passou por um processo de homogeneização em um liquidificador de alta rotação com copo de aço inoxidável, da marca Skymsen, modelo LI2.0N, que possui uma potência de 900 watts e alcança uma velocidade de 18.000 rotações por minuto. As preparações homogeneizadas foram posteriormente pesadas, e foram retiradas amostras do volume total para a análise dos micronutrientes estabelecidos neste estudo. O peso de cada amostra foi fixado em 250 gramas.
A quantificação de Fe, K e P nas amostras foi realizada por meio da técnica de espectrometria de emissão óptica por plasma acoplado individualmente (ICP-OES) e os resultados foram expressos em miligramas (mg) de mineral por cada 100 gramas de alimento. É importante ressaltar que todas as análises foram conduzidas em triplicata [12].
Os dados obtidos foram submetidos à análise estatística descritiva, e foram apresentados em termos de média, desvio padrão, valor mínimo, valor máximo e mediana. Os dados obtidos foram tabulados utilizando o software Excel ® para Windows, na versão 2020, e posteriormente foram submetidos a uma Análise de Variância (ANOVA) de duas vias, com aplicação do teste post-hoc de Tukey HSD (diferença honestamente significativa) para comparar as médias entre as diferentes amostras. Também foram realizadas comparações de pares, com ajuste para múltiplas comparações, usando o método de Sidak. Todas essas análises foram conduzidas com um nível de significância estabelecido em 5% e foram realizadas por meio do software SPSS (Statistical Package of the Social Sciences), na versão 22.0.
A análise comparativa da composição mineral das misturas caseiras preparadas com os peixes badejo, cação e dourado revelou diferenças significativas na concentração dos minerais estudados. Os resultados indicam que a escolha do tipo de peixe pode influenciar substancialmente os teores de potássio, fósforo e ferro nas preparações alimentares. Isso sugere que a seleção de ingredientes é crucial para atender às necessidades nutricionais específicas, especialmente em dietas que buscam a otimização da ingestão mineral. Os dados apresentados demonstram as concentrações dos elementos em estudo em relação ao tipo de peixe utilizado e à panela em que a preparação foi realizada, conforme detalhado na Tabela 2.
Tabela 2 - Resultados de K, P e Fe das amostras considerando as diferentes combinações de Peixe e Panela utilizados. Resultados expressos em média ± desvio padrão, mediana, valor mínimo e máximo
Peixe |
Mineral |
Moqueca Capixaba |
|||
Média ± Desvio Padrão |
Mediana |
Mínimo |
Máximo |
||
Badejo |
K mg/100g |
249,6 ± 1,72 |
250,30 |
247,60 |
250,80 |
P mg/100g |
116 ± 10,08 |
110,74 |
109,64 |
127,63 |
|
Fe mg/100g |
0,63 ± 0,05 |
0,66 |
0,57 |
0,66 |
|
Dourado |
K mg/100g |
232,9 ± 8,61 |
233,30 |
224,10 |
241,30 |
P mg/100g |
123,15 ± 6,56 |
119,44 |
119,28 |
130,72 |
|
Fe mg/100g |
0,86 ± 0,06 |
0,83 |
0,81 |
0,93 |
|
Cação |
K mg/100g |
286,73 ± 14,79 |
279,90 |
276,60 |
303,70 |
P mg/100g |
190,38 ± 6,94 |
188,11 |
184,85 |
198,17 |
|
Fe mg/100g |
1,12 ± 0,07 |
1,13 |
1,05 |
1,19 |
|
Peixe |
Mineral |
Controle (Branco) |
|||
Média ± Desvio Padrão |
Mediana |
Mínimo |
Máximo |
||
Badejo |
K mg/100g |
242,67 ± 8,09 |
238,40 |
237,60 |
252,00 |
P mg/100g |
124,62 ± 10,49 |
119,30 |
117,85 |
136,70 |
|
Fe mg/100g |
0,76 ± 0,07 |
0,78 |
0,68 |
0,82 |
|
Dourado |
K mg/100g |
253,63 ± 6,21 |
250,10 |
250,00 |
260,80 |
P mg/100g |
134,42 ± 8,41 |
131,70 |
127,71 |
143,85 |
|
Fe mg/100g |
0,93 ± 0,19 |
0,89 |
0,76 |
1,13 |
|
Cação |
K mg/100g |
254,3 ± 9,49 |
251,00 |
246,90 |
265,00 |
P mg/100g |
142,36 ± 6,20 |
139,25 |
138,34 |
149,50 |
|
Fe mg/100g |
0,91 ± 0,13 |
0,84 |
0,83 |
1,06 |
Fonte: Autores, 2023.
A análise de variância, apresentada na tabela 3, foi conduzida para avaliar o impacto do tipo de panela e do tipo de peixe nas concentrações de K, P e Fe nas moquecas preparadas. O estudo examinou se as diferenças nos materiais das panelas e nas espécies de peixes influenciavam significativamente a composição mineral dos alimentos preparados. Investigou-se especificamente a variabilidade das concentrações minerais em função das variáveis de interesse: tipo de panela e tipo de peixe, além de explorar possíveis interações entre esses dois fatores. Os resultados estatísticos proporcionam uma visão detalhada das influências e interações que emergiram do estudo, destacando as variáveis que apresentaram efeitos significativos.
Tabela 3 - ANOVA de duas vias para a concentração dos elementos, tipo de panela e tipo de peixe utilizado
Elemento |
Origem |
Graus de Liberdade |
F |
p-valor |
K |
Panela |
1 |
2,165 |
0,167 |
Peixe |
2 |
16,559 |
0,000* |
|
Interação |
2 |
13,019 |
0,001* |
|
P |
Panela |
1 |
5,874 |
0,032* |
Peixe |
2 |
53,420 |
0,000* |
|
Interação |
2 |
24,503 |
0,000* |
|
Fe |
Panela |
1 |
0,004 |
0,951 |
Peixe |
2 |
13,545 |
0,001* |
|
Interação |
2 |
4,326 |
0,038* |
Fonte: Autores, 2020. * estatisticamente significativo.
A análise post-hoc de Tukey HSD evidenciou que o tipo de peixe utilizado na preparação exerce impacto significativo sobre as concentrações dos elementos em análise. No que se refere à concentração de Fe, observou-se que o cação apresenta médias significativamente mais elevadas em comparação ao badejo (IC95% = 0,156-0,489; p = 0,001) e não apresenta diferenças em relação ao dourado. O badejo, por sua vez, apresenta concentrações inferiores tanto ao cação (IC95% = -0,489 a -0,156; p = 0,001) quanto ao dourado (IC95% = -0,36 a -0,29; p = 0,02). O dourado, como mencionado anteriormente, não difere significativamente do cação e exibe concentrações superiores às apresentadas pelo badejo (IC95% = 0,09-0,36; p = 0,02).
No que se refere à concentração de K, o cação apresenta médias significativamente maiores em comparação ao badejo (IC95% = 10,53-38,26; p = 0,001) e ao dourado (IC95% = 13,31; p < 0,001). O badejo, por sua vez, apresenta concentrações inferiores ao cação e não difere do dourado. O dourado, como mencionado anteriormente, não difere significativamente do cação e exibe concentrações inferiores às apresentadas pelo cação.
No tocante à concentração de P, a análise post-hoc de Tukey HSD demonstrou que o cação apresenta médias significativamente superiores em relação ao badejo (IC95% = 33,60-59,06; p < 0,001) e ao dourado (IC95% = 25,10-50,55; p < 0,001). O badejo, por sua vez, exibe concentrações inferiores tanto em relação ao cação quanto ao dourado, sem apresentar diferenças significativas entre eles. O dourado, conforme mencionado anteriormente, não apresenta diferenças significativas em relação ao cação, embora suas concentrações sejam inferiores às apresentadas pelo cação.
A análise de pares por meio do ajuste de Sidak para o K na panela de vidro não revelou diferenças estatisticamente significativas entre as médias deste elemento, independentemente do tipo de peixe utilizado [F(2,12) = 1,580; p = 0,24]. No entanto, na panela de barro, essa diferença se torna evidente e significativa (F(2,12) = 27,998; p < 0,001), com constatação de discrepâncias nas médias das concentrações de K entre cação x badejo (IC 95% = 16,80-57,53; p < 0,001) e cação x dourado (IC 95% = 33,33-74,06), ambas com concentração superior no cação. Não se verificaram diferenças estatisticamente significativas nas concentrações de K entre badejo e dourado, independentemente do tipo de panela utilizada.
No tocante ao Fe, a comparação de pares com ajuste de Sidak na panela de vidro [F(2,12) = 2,133; p = 0,161] não revelou diferenças estatisticamente significativas nas médias deste elemento, independentemente do tipo de peixe utilizado. Entretanto, na panela de barro, essa diferença apresentou significância estatística (F(2,12) = 15,738; p < 0,001), com identificação de diferenças nas médias das concentrações de Fe entre cação e badejo (IC 95% = 0,250-0,740; p < 0,001) e cação x dourado (IC 95% = 0,024-0,513; p = 0,031), em ambos os casos, a concentração de Fe foi superior no cação. Não foram observadas diferenças estatisticamente significativas nas concentrações de Fe entre badejo e dourado, independentemente do tipo de panela utilizada.
No que diz respeito ao P, a comparação de pares com ajuste de Sidak na panela de vidro [F(2,12) = 3,56; p = 0,061] não indicou diferenças estatisticamente significativas nas médias deste elemento, independentemente do tipo de peixe utilizado. No entanto, na panela de barro, essa diferença apresentou significância estatística (F(2,12) = 74,361; p < 0,001), com identificação de diferenças nas médias das concentrações de P entre cação e badejo (IC 95% = 55,96-93,36; p < 0,001) e entre cação e dourado (IC 95% = 48,63-86,03; p < 0,001), em ambos os casos, a concentração de P foi superior no cação. Não foram constatadas diferenças estatisticamente significativas nas médias das concentrações de P entre badejo e dourado, independentemente do tipo de panela utilizada.
Evidenciou-se que a MC, quando considerado o tipo de peixe utilizado em sua preparação, pode exibir níveis elevados de P e K em comparação com as moquecas preparadas em panelas de vidro. Essa observação está diretamente associada à possibilidade de transferência de elementos químicos da panela para o alimento. A composição do barro pode estar associada à potencial transferência desses elementos. Estudos da composição química da argila empregada na manufatura das panelas de barro revelam uma concentração significativa de Fe em sua composição, onde o Fe2O3 corresponde a 6,4% (equivalente a 1,47 mg) do peso total da argila (23 mg) [14]. Há ainda registros da presença de pentóxido de P (P2O5) e níveis significativos de óxidos alcalinos, tais como o óxido de K e o óxido de sódio (K2O + Na2O) [14,15].
Liberação de substâncias provenientes de utensílios culinários tem se revelado um campo de interesse no âmbito da nutrição, uma vez que pode influenciar na recomendação ou desaconselhamento do uso de determinados utensílios, além de orientar as práticas de manipulação e preparo de alimentos nesses recipientes [16].
Estudos relacionados à migração de Fe dos utensílios de Fe para os alimentos têm demonstrado um aumento nessa transferência a partir do terceiro ciclo de uso [13]. É relevante destacar que a presente investigação se limitou a avaliar o primeiro ciclo de uso das panelas de barro capixabas. A transferência de Fe para os alimentos tem sido tradicionalmente considerada como uma estratégia popular para auxiliar no controle da anemia [16].
Entender a relação entre o Fe e a anemia é crucial, e os resultados dos estudos sobre a transferência de Fe das panelas de barro para os alimentos destacam a importância das escolhas alimentares e das práticas culinárias na manutenção da saúde, especialmente em populações em risco de deficiência de Fe e anemia, como os pacientes com DRC.
A anemia é uma complicação comum em pacientes com DRC, e a deficiência de Fe é uma das principais causas dessa anemia, além de outros fatores, como inflamação crônica e comprometimento da produção de eritropoietina (EPO). A produção de eritrócitos é estimulada pela EPO, e quando esse estímulo ocorre, a quantidade de Fe na medula óssea aumenta, sendo fundamental na absorção e utilização do Fe. Em DRC, a produção de EPO está prejudicada, o que leva a uma necessidade aumentada de Fe. Esse aumento na demanda de Fe está relacionado tanto a um incremento na absorção intestinal de Fe quanto a uma maior mobilização de Fe a partir das reservas [18].
No contexto atual, em que as doenças cardiovasculares representam a principal causa de óbito em indivíduos com doença renal crônica (DRC), a anemia desempenha um papel significativo no agravamento da hipertrofia ventricular esquerda (HVE) e na progressão da insuficiência cardíaca congestiva (ICC). Além disso, ela contribui para a deterioração dos sintomas de angina em pacientes com DRC que também apresentam doenças coronarianas [17].
Nos pacientes com DRC, a hiperfosfatemia, caracterizada pelo aumento dos níveis séricos de P, está associada a três principais fatores: uma elevada ingestão de P, uma reduzida capacidade de depuração do P devido à disfunção renal ou ao uso de métodos dialíticos e a ocorrência de remodelação óssea, seja ela excessiva ou insuficiente. A presença de hiperfosfatemia está correlacionada ao desenvolvimento do hiperparatireoidismo secundário (HPS), o que amplia os riscos para morbimortalidade e eventos cardiovasculares adversos [19,20,21].
A ingestão de P na dieta deve ser ajustada para manter os níveis séricos de fosfato dentro da faixa normal em adultos com DRC a partir do estágio 3. Isso envolve considerar a fonte de P na dieta e a biodisponibilidade das fontes (animal, vegetal, aditivos), mas as recomendações enfatizam a necessidade de avaliação individualizada do paciente para determinar os ajustes necessários. Para adultos entre 19-50 anos de ambos os sexos sem comorbidades, a recomendação diária de ingestão de P varia de 580 mg (EAR) a 700 mg (IA) [22,23].
Em relação à MC de cação, ressaltamos que 100 g do prato contêm 190,38 mg de P, o que representa aproximadamente 27,2% da ingestão diária recomendada. Em pacientes no estágio 5-D em tratamento de hemodiálise, ocorre a remoção de metabólitos, mas é importante observar que esse tratamento não é completamente eficaz na eliminação do P, pois apenas 250 mg de P são removidos por sessão, o que é insuficiente para manter os níveis séricos abaixo de 5,5 mg/dL. Isso faz com que seja necessária a adaptação de uma dieta hiperproteica com restrição de P, o que pode ser desafiador, uma vez que alimentos ricos em proteínas também são ricos em P [24,25].
A utilização de dietas com baixo teor de P pode trazer benefícios aos pacientes, incluindo a redução do risco de calcificação vascular e de tecidos moles, prevenção de desfechos cardiovasculares adversos e até mesmo a desaceleração da progressão da DRC (DRC) [24,25,26].
Com relação ao K, é essencial ajustar a ingestão de K na dieta para manter os níveis séricos dentro da faixa normal (3,5-5,5 mEq/L), considerando as necessidades individuais de cada paciente. As recomendações diárias de ingestão de K para adultos sem comorbidades, entre 19-50 anos, são de até 3400 mg/dia (IA) [22,23]. A MC de Cação, por exemplo, contém 286,73 mg de K a cada 100 g, representando 8,4% da ingestão diária recomendada.
O mecanismo de regulação e equilíbrio do K é essencialmente renal, com aproximadamente 2% da carga total de K no corpo presente no líquido extracelular. Os mecanismos regulatórios mantêm os níveis plasmáticos de K dentro da faixa de 3,5 a 5 mEq/L em condições normais. Em situações normais, há um equilíbrio entre a eliminação e a ingestão de K: se o consumo de K exceder a excreção e os níveis plasmáticos de K aumentarem, a aldosterona é liberada na corrente sanguínea devido ao efeito direto da hipercalemia no córtex da glândula suprarrenal. Isso mantém os canais iônicos abertos por mais tempo nas células P do néfron distal, aumentando a atividade da bomba de sódio-K (Na-K-ATPase) e, como resultado, promove um aumento na excreção renal de K. Alterações nos níveis plasmáticos de K afetam o potencial de repouso da membrana de todas as células [30,31].
O K tem um impacto significativo nos tecidos excitáveis, como o coração. Concentrações abaixo de 3 mEq/L (hipocalemia) ou acima de 6 mEq/L (hipercalemia) afetam negativamente os tecidos musculares e nervosos excitáveis. A hipocalemia resulta em fraqueza muscular devido à dificuldade dos neurônios e músculos em gerar potenciais de ação. Isso pode levar à insuficiência dos músculos respiratórios e cardíacos. A hipercalemia, bastante comum em pacientes com DRC devido à redução da excreção renal de K e problemas de regulação, é um distúrbio de K perigoso. Inicialmente, os tecidos excitáveis se tornam mais excitáveis devido à despolarização, mas, posteriormente, enfrentam dificuldades na repolarização, tornando-se menos excitáveis. Essa condição pode resultar em arritmias cardíacas graves, e até parada cardíaca [31].
Estudos destacam o controle da ingestão de K como uma intervenção nutricional crucial no tratamento da DRC, enfatizando a importância da restrição em pacientes submetidos à hemodiálise, especialmente aqueles com anúria [21,27,28,29]. Além disso, recomenda-se a utilização de métodos de cocção, molhos e enxágue para reduzir a presença deste mineral hidrossolúvel [28].
O estudo revelou que a MC, dependendo do tipo de peixe utilizado em sua preparação e do tipo de panela utilizada, pode conter níveis elevados de fósforo (P) e potássio (K) em comparação com as moquecas preparadas em panelas de vidro. Esse fenômeno está relacionado à possível transferência de elementos químicos das panelas de barro para o alimento durante o processo de cocção. Dietas que visam controle P se beneficiam da inclusão da Moqueca de Badejo. Dietas hipocalêmicas se beneficiam da preparação com Dourado. Há maior transferência de Fe na moqueca de cação, todavia em condições de hiperfosfatemia há que se analisar cuidadosamente essa opção.
A individualização do tratamento nutricional, levando em consideração o estágio da DRC e as necessidades específicas de cada paciente, é fundamental para otimizar o manejo da doença e melhorar a qualidade de vida. O presente trabalho não possuiu financiamento e por esse motivo foram realizadas apenas análises dos elementos propostos e no primeiro uso da panela de barro. Espera-se que novos pesquisadores ou docentes se interessem pelo tema e busquem através dos programas de iniciação científica e pós-graduação, a captação de recursos necessária para o desenvolvimento de mais pesquisas nessa área.
Conflitos de interesse
Os autores declaram não haver conflitos de interesse de qualquer natureza.
Fontes de financiamento
Financiamento próprio.
Contribuição dos autores
Concepção e desenho da pesquisa: Ferreira AD; Coleta de dados: Ferreira AD, Amichi KR; Análise e interpretação dos dados: Ferreira AD, Amichi KR; Análise estatística: Ferreira AD; Redação do manuscrito: Ferreira AD; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Amichi KR.
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