ARTIGO ORIGINAL
Do prato à mente: Coexistência de adição por comida, ansiedade e obesidade em crianças
From plate to mind: Coexistence of food addiction, anxiety and obesity in children
Beatriz Silva de Carvalho1, Drielly Rodrigues Viudes1, Maria do Carmo Pinho Franco2
1Programa de Pós-Graduação em Medicina Translacional, Departamento de Medicina, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil
2Departamento de Fisiologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil
Recebido em: 05 de agosto de 2024; Aceito em: 26 de agosto de 2024.
Correspondência: Maria do Carmo Pinho Franco, maria.franco@unifesp.br
Como citar
Carvalho BS, Viudes DR, Franco MCP. Do prato à mente: Coexistência de adição por comida, ansiedade e obesidade em crianças. Nutr Bras. 2024;23(3):992-1003. doi:10.62827/nb.v23i3.3026
Introdução: Crianças e adolescentes com excesso de peso estão susceptíveis ao comportamento alimentar aditivo. Objetivo: Verificar as correlações entre sintomas de adição por comida, ansiedade e estado nutricional em crianças com idade entre 8 e 12 anos. Métodos: A amostra foi composta por crianças de três escolas públicas. A coleta dos dados envolveu avaliação antropométrica com aferição de peso e estatura, cálculo do índice massa corporal (IMC) para classificação do estado nutricional conforme escores Z. Aplicou-se a escala de avaliação hedônica para preferência alimentar, escala de transtornos relacionados à ansiedade na infância (SCARED) e escala de dependência alimentar de Yale para Crianças (YFAS-C). Todos os testes estatísticos foram bicaudais e o nível de significância foi estabelecido em P<0,05. Resultados: Participaram 115 crianças, 63 meninas, com idade média de 9,9 anos. Sintomas gerais de transtorno de ansiedade foram apresentados por 38,3% (n=44), com maior frequência de ansiedade naquelas com sobrepeso ou obesidade (60%, n=32) (P=0,041). Pela escala YFAS-C, 28 crianças (24,3%) apresentavam sintomas de adição por comida, sendo “abstinência” (71,3%, n=20) o mais presente. Foi observado que 17 crianças (60,7%) apresentaram concomitantemente sintomas de adição por comida e de ansiedade (P= 0,001), e 15 crianças (27,8%) apresentavam comportamento alimentar aditivo, sintomas ansiogênicos e sobrepeso ou obesidade, sugerindo coexistência desses transtornos. Observou-se correlação moderada entre os escores do YFAS-C com o IMC (r= 0,320; P<0,001) e com o escore SCARED (r= 0,479; P<0,001). Presença de sintomas aditivos foi relacionada a maior preferência por alimentos ultraprocessados (P= 0,024). Conclusão: Descreveu-se a coexistência de adição por comida, transtorno de ansiedade e sobrepeso/obesidade em crianças.
Palavras–chave: Comportamento alimentar; dependência de alimentos; ansiedade; estado nutricional; obesidade infantil.
Introduction: Overweight children and adolescents are susceptible to addictive eating behavior. Objective: To verify the correlations between symptoms of food addiction, anxiety and nutritional status in children aged between 8 and 12 years. Methods: The sample consisted of children from three public schools. Data collection involved anthropometric assessment with measurement of weight and height, calculation of body mass index (BMI) to classify nutritional status according to Z scores. The hedonic assessment scale for food preference, disorder scale was applied. related to childhood anxiety (SCARED) and the Yale Food Addiction Scale for Children (YFAS-C). All statistical tests were two-tailed and the significance level was set at P<0.05. Results: 115 children participated, 63 girls, with an average age of 9.9 years. General symptoms of anxiety disorder were presented by 38.3% (n=44), with a higher frequency of anxiety in those who were overweight or obese (60%, n=32) (P=0.041). Using the YFAS-C scale, 28 children (24.3%) showed symptoms of food addiction, with “withdrawal” (71.3%, n=20) being the most common. It was observed that 17 children (60.7%) presented concomitant symptoms of food addiction and anxiety (P= 0.001), and 15 children (27.8%) presented addictive eating behavior, anxiogenic symptoms and overweight or obesity, suggesting coexistence of these disorders. A moderate correlation was observed between the YFAS-C scores and the BMI (r= 0.320; P<0.001) and the SCARED score (r= 0.479; P<0.001). The presence of addictive symptoms was related to a greater preference for ultra-processed foods (P= 0.024). Conclusion: The coexistence of food addiction, anxiety disorder and overweight/obesity in children has been described.
Keywords: Feeding behavior; food addiction; anxiety; nutritional status; pediatric obesity.
O comportamento alimentar está relacionado ao modo como as pessoas se alimentam. O primeiro contato que temos com os alimentos é ainda na primeira infância, sendo assim, tais comportamentos começam a ser construídos já nos primeiros anos de vida, sejam esses bons ou ruins, e podem refletir nos anos subsequentes, relacionando-se diretamente com a qualidade de vida dos indivíduos [1]. É sabido que os fatores psicossociais interferem diretamente na modulação do comportamento alimentar, uma vez que, estão relacionados às relações interpessoais, culturais, sociais e principalmente psicológicas. Comumente, as crianças, em sua grande maioria, já levam consigo o hábito de associar a comida a momentos e sentimentos, sejam estes alegres ou tristes [2]. Além disso, as mudanças nos padrões de consumo alimentar ocorridos nas últimas décadas, com o elevado consumo de alimentos ultraprocessados, contribuem para comportamentos alimentares pouco saudáveis [3].
Há evidências de que os comportamentos alimentares estão intimamente associados ao índice de massa corporal (IMC) e à adição por comida [4,5]. A adição alimentar faz referência a determinados comportamentos alimentares, tais como, o consumo excessivo de alimentos de forma habitual, não intencional, impulsiva, de modo que cause prejuízos à saúde, que ocorrem de forma imediata ou a longo prazo [6, 7]. Contudo, a definição e os mecanismos envolvidos nesse processo ainda não são consensuais, mas alguns estudos sugerem que os mecanismos neurobiológicos envolvidos na adição por comida são semelhantes aos encontrados em outros tipos de vícios [6-8].
É sabido que o comportamento alimentar aditivo pode ser desencadeado por algumas substâncias encontradas em determinados alimentos, principalmente aqueles que sofreram intenso processo de industrialização [9]. Os alimentos ultraprocessados possuem composição nutricional, de modo geral, elevada em açúcar, sal e/ou gordura na mesma formulação, assim, se tornam atrativos ao paladar, ou seja, hiperpalatáveis e iminentemente abusivos [9-11].
Para avaliar os sintomas de adição por comida em crianças e adolescentes, foi desenvolvida a Escala de Dependência Alimentar de Yale para Crianças (YFAS-C) [9, 12]. Estudos que utilizaram esta escala relataram taxas de prevalência de adição por comida que variou de 4% a 22,7%, com taxas significativamente mais elevadas de 14,4% a 38% observadas entre as crianças e adolescentes com sobrepeso ou obesidade [4,11-14]. Estes dados nos remetem a importância de avaliar em crianças a presença de comportamentos alimentares aditivos, uma vez que, as mesmas se mostram mais susceptíveis aos danos causados por tais substâncias, porque os primeiros anos de vida representam uma janela de oportunidades para o desenvolvimento de comportamentos alimentares, o sistema nervoso central está em constante processo de evolução e adaptação, sendo que os comportamentos incorporados nessa faixa etária podem perdurar durante toda a vida, se não tratados [8, 15].
Outro aspecto clínico preocupante é a intersecção entre adição por comida e saúde mental. Recentemente, um estudo de revisão sistemática relatou a presença de correlação entre a adição por comida e diversas desordens mentais, incluindo depressão, sintomas de ansiedade e diminuição da autoestima em adolescentes. Além disso, estas desordens de saúde mental foram frequentemente observadas em adolescentes que apresentavam IMC elevado, sugerindo a presença de um quadro clínico complexo e multifacetado [16]..
Considerando o aumento simultâneo da obesidade e dos transtornos de saúde mental entre as crianças, nosso estudo procura elucidar as correlações entre sintomas de adição por comida, status do IMC e transtornos de ansiedade em uma população de crianças com idade entre 8 e 12 anos. Esta pesquisa visa compreender estas inter-relações, contribuindo para o desenvolvimento de estratégias clínicas de intervenção, prevenção e tratamento precoce.
A coleta de dados seguiu todos os padrões éticos exigidos nacionalmente, e teve início após aprovação do projeto de pesquisa sob o parecer número 2.967.931 e Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) número 94208518.7.0000.5505. Dessa forma, de novembro de 2018 a novembro de 2019, foi realizado um estudo transversal descritivo que envolveu 115 crianças (52 meninos e 63 meninas) com idade entre 8 e 12 anos que frequentavam três escolas públicas de ensino fundamental, localizadas no interior do estado de São Paulo, Brasil. Durante três dias, avaliamos a antropometria, aplicamos a escala de avaliação hedônica, escala de transtornos relacionados à ansiedade na infância (SCARED) e YFAS-C. Todos os questionários foram aplicados individualmente em uma sala silenciosa. Quando necessário, o entrevistador lia cada questão enquanto a criança acompanhava a leitura dos questionários. A aplicação de cada questionário durou entre 10-20 minutos.
Para avaliação antropométrica, a massa corporal, estatura e circunferência da cintura foram aferidos usando técnicas padrão. As crianças foram classificadas como peso saudável, sobrepeso ou obesidade com base nos escores z do IMC para idade [12].
A Escala de Transtorno de Ansiedade (SCARED) é um instrumento de autorrelato utilizado no rastreamento de desordens de ansiedade em crianças e adolescentes, validado para a língua portuguesa falada no Brasil [18, 19]. Composto por 41 itens que englobam cinco fatores: transtorno do pânico (13 itens); ansiedade generalizada (9 itens); ansiedade de separação (8 itens); fobia social (7 itens) e fobia escolar (4 itens). Em cada item, a criança escolheu a resposta que melhor descreveu como ela tem se sentido nos últimos três meses por escala de Likert de zero a dois. A pontuação total varia de zero a 82, sendo a pontuação acima de 25 indicativo da presença de ansiedade [20].
O instrumento de autorrelato validado para o português brasileiro, YFAS-C, também foi aplicado [21]. Composto por 25 itens baseados nos critérios do Manual de Diagnóstico de Doenças Psiquiátricas – IV (DSM-IV) que avalia a presença de adição por comida durante os últimos 12 meses, pela avaliação de 7 critérios relacionados ao comportamento alimentar [12]. Cada item é pontuado numa escala de pontos que varia em um intervalo de 0 (nunca) a 7 (todos os dias). Existem duas opções de avaliação: (1) pontuação de frequência com a contagem contínua de sintomas refletindo o número de critérios atendidos pela criança e (2) pontuação dicotômica que permite classificar a criança como tendo cumprido os critérios de diagnóstico de comportamento alimentar do tipo aditivo, ou seja, aquelas que relataram três ou mais sintomas e comprometimento ou angústia clinicamente significativos (que é análogo aos requisitos de diagnóstico de dependência de substâncias no DSM-IV) [12].
A Escala Facial de Avaliação Hedônica de 5 pontos (1: detesto; 2: não gosto; 3: indiferente; 4: gosto; 5: adoro), foi utilizada para avaliar o gosto por diversos alimentos como verduras, legumes, frutas, alimentos ultraprocessados (por exemplo, biscoitos doces e salgados, salgadinhos, sorvetes, chocolates, confeitos em geral, macarrão instantâneo, salsichas, sucos industrializados e refrigerantes), massas/cereais, grãos, leite/derivados, carnes e ovos.
Para análise dos dados descritivos e inferenciais, as variáveis categóricas foram expressas em frequência e comparadas pelo teste do qui-quadrado. As variáveis numéricas foram expressas como média e desvio padrão e avaliadas pelo teste “t” de Student. Todos os testes estatísticos foram bicaudais e o nível de significância foi estabelecido em P<0,05. As análises estatísticas foram realizadas utilizando o software IBM SPSS (versão 22; IBM Corporation; Armonk, NY, EUA).
O presente estudo avaliou 115 crianças (52 meninos e 63 meninas) com idade média de 9,9 anos. Em relação a raça/cor, foi observado que 65,2% (n=75) das crianças eram da cor branca, 22,6% (n=26) pardas, 6,1% amarelas (n=7) e 6,1% (n=7) negras. Em relação ao estado nutricional, o IMC médio da amostra foi 19,7 Kg/m2 (Variação: 13,6 – 38,5; DP: 4,8 Kg/m2), sendo a frequência de eutrofia de 53% (n=61) e de sobrepeso/obesidade de 47% (n=54) (Tabela 1). Notou-se que não houve diferenças significativas em relação a raça/cor (P= 0,633).
Tabela 1 - Características gerais da população do estudo
Eutrofia (n= 61) |
Sobrepeso (n= 28) |
Obesidade (n= 16) |
Obesidade grave (n= 10) |
P valor |
|
Idade* (anos) |
9.8 ± 0.12 |
10.3 ± 0.16 |
9.8 ± 0.23 |
9.6 ± 0.37 |
0.193 |
Sexo (%) Feminino Masculino |
59 (n= 36) 41 (n= 25) |
60.7 (n=17) 39.3 (n= 11) |
37.5 (n=6) 62.5 (n=10) |
40 (n=4) 60 (n=6) |
0.302 |
IMC* (Kg/m2) |
16.4 ± 0.20 |
20.7 ± 0.23 |
24.3 ± 0.78 |
29.9 ± 1.06 |
< 0.001 |
SCARED Score* |
28.8 ± 1.43 |
30.5 ± 1.77 |
41.2 ± 2.83 |
45.4 ± 4.22 |
0.001 |
Prevalência sintomas de≈ansiedade (%) |
27.9 (n=17) |
25 (n= 7) |
68.8 (n=11) |
70 (n=7) |
0.001 |
Escore YFAS-C* |
2.62 ± 0.21 |
3.57 ± 0.23 |
4.75 ± 0.38 |
5.40 ± 0.56 |
< 0.001 |
Prevalência de adição alimentar (%) |
13.1 (n=8) |
28.6 (n= 8) |
43.8 (n=7) |
50 (n=5) |
0.010 |
Valores expressos em média ± desvio padrão Valores expressos em percentual (%) Valores de P calculados pelo teste qui-quadrado ou teste T de Student. IMC - Índice de Massa Corporal; SCARED - Triagem para Transtornos Relacionados à Ansiedade Infantil; YFAS-C - Escala de Dependência Alimentar de Yale para Crianças.
De acordo com a escala de adição alimentar de YFAS-C, verificou-se que 28 crianças (24,3%) apresentavam sintomas congruentes com a presença de adição por comida, sendo que os sintomas mais prevalentes foram “abstinência” (71,3%) seguido de “incapacidade de reduzir” (66,9%). A média do escore de YFAS-C foi de 4,9 (DP: 1,2) para as crianças com presença de adição alimentar e 2,8 (DP: 1,7) para aquelas com ausência de adição por comida. Não foram observadas diferenças significativas em relação ao sexo (P= 0,307) e à raça/cor (P= 0,357), apesar de nenhuma criança da raça amarela apresentar sintomas compatíveis com a presença de adição por comida. Já em relação ao estado nutricional, observou-se que 20 crianças (71,4%) com adição por comida também apresentavam sobrepeso ou obesidade (P= 0,003). Além disso, verificou-se que 17 crianças (60,7%) com adição por comida também apresentavam sintomas gerais de ansiedade (P= 0,001). É importante ressaltar que 15 crianças (27,8%) apresentavam comportamento alimentar aditivo, sintomas ansiogênicos e sobrepeso ou obesidade, sugerindo coexistência desses transtornos. Por fim, foi observada correlação moderada entre os escores do YFAS-C com o IMC (r= 0,320; P<0,001) e com o escore SCARED (r= 0,479; P<0,001).
Em relação a preferência alimentar, os resultados indicaram que as crianças com adição por comida apresentaram frequência significativamente menor de preferência tanto por legumes (10,7%) (P= 0,048) quanto por verduras (7,1%) (P= 0,001). Por outro lado, observamos que essas crianças apresentavam maior preferência por produtos ultraprocessados (75%) (P= 0,024) quando comparadas àquelas com ausência de comportamento alimentar aditivo. Já as outras classes de alimento como as frutas (P= 0,902), grãos (P= 0,380), massas/cereais (P= 0,119) leite/derivados (P= 0,406), carnes e ovos (P= 0,591) não foram observadas diferenças significativas.
A adição por comida, a ansiedade e a obesidade podem por si só afetar negativamente a qualidade de vida de uma criança, e o impacto combinado pode ser ainda mais significativo. Compreender a relação entre esses transtornos pode ajudar pais, educadores e profissionais de saúde a fornecer o apoio necessário de que as crianças precisam.
O termo adição por comida tem sido amplamente utilizado para se referir ao comportamento alimentar aditivo caracterizado pelo consumo excessivo, involuntário e/ou patológico de alimentos, causando danos à saúde [4,12,13]. A diferença entre o comportamento normal e o aditivo é o controle que o indivíduo exerce sobre o desejo e a ação de consumir algo [22]. Nossos resultados indicam uma frequência (24,3%) preocupante de comportamento alimentar aditivo em crianças, compatível com a frequência relatada em estudos anteriores na literatura (4-38%) [4,11-14,23].
Alguns fatores podem ser analisados para compreender os mecanismos por trás da adição por comida durante a infância. É verdade que o ambiente em que a criança é criada pode influenciar na formação dos comportamentos alimentares. É sabido que crianças com adição por comida também costumam ter histórias familiares desse comportamento aditivo. Além disso, a restrição ou a pressão na hora das refeições aumentam o risco de desenvolver adição por comida [4].
O consumo alimentar é mediado por sinais hedônicos baseados na recompensa, o que influência o desejo de consumir determinados alimentos. A fome hedônica pode ser caracterizada pela vontade ou prazer em comer, mesmo na ausência de fome fisiológica, e como consequência leva a maior ingestão de energia e aumento nas prevalências de sobrepeso e obesidade em pediatria [24]. No presente estudo observamos que as crianças com adição por comida apresentavam maior preferência por alimentos ultraprocessados e menor preferência por verduras e legumes. Resultado semelhante foi descrito em um estudo que investigou as características de adição por comida em 139 crianças e constatou maior consumo de alimentos ultraprocessados dentre as crianças com sintomas de comportamento alimentar aditivo [11]. Contudo, há a necessidade de pesquisas que desmembrem tais alimentos, pois a exemplo do açúcar e da gordura, não existe apenas um tipo de classificação, ou seja, um tipo de gordura ou um só tipo de açúcar [7]. Portanto, é fundamental descobrir se todos os componentes dos alimentos ultraprocessados possuem o mesmo potencial aditivo.
Os alimentos ultraprocessados são considerados hiperpalatáveis e são capazes de induzir grande liberação de dopamina, acarretando a estimulação da área de recompensa mesolímbica no cérebro, levando o indivíduo a perder o controle sobre a sua ingestão [9, 11]. Esses alimentos podem prejudicar as respostas do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal ao estímulo do estresse, levando ao comportamento alimentar aditivo devido aos efeitos recompensadores desses alimentos [25]. De fato, estudos demonstraram que o sistema de resposta neural é ativado em indivíduos com adição por comida, de forma muito semelhante ao observado nos transtornos por uso de substâncias ilegais [25,26].
Tem sido relatado na literatura que a obesidade interfere diretamente no desenvolvimento de diversos gatilhos comportamentais. Estudo conduzido por Pan e colaboradores conseguiram identificar que a presença de sobrepeso ou obesidade interferiu diretamente no desenvolvimento de gatilhos comportamentais e psicopatológicos, indicando assim que essas crianças são mais sensíveis a estímulos emocionais [22]. Portanto, as crianças com excesso de peso podem ser mais sensíveis a quaisquer estímulos emocionais, explicando o desenvolvimento de determinados comportamentos que levam à adição por comida.
Estudos em crianças e adolescentes relataram que a presença de adição por comida tem sido positivamente associada ao IMC [4,12,14]. Pape e colaboradores estabeleceram que transtornos como adição por comida e compulsão alimentar periódica possuem características semelhantes, ou seja, compulsão e distúrbios no sistema de recompensa alimentar. Após analisar a presença de adição alimentar em indivíduos com sobrepeso e obesidade, esses autores observaram correlação positiva entre os sintomas graves de adição com comida com o IMC, sofrimento psíquico e sintomas depressivos [27]. Outro estudo na literatura, explorou a correlação do padrão alimentar com a prevalência de adição por comida em adolescentes com obesidade, dando ênfase também a frequência dos alimentos consumidos. Esse estudo constatou correlação significativa entre o comportamento alimentar aditivo e o excesso de peso. Já em relação ao padrão alimentar, os escores mais elevados de YFAS-C foram positivamente correlacionados com as calorias totais, gramas de gordura (total, saturada e trans), gramas de carboidrato e gramas de açúcares. Os autores concluíram que adolescentes com sintomatologia para adição alimentar apresentavam maior prevalência de consumo de alimentos ultraprocessados se comparados a aqueles sem sintomatologia, sustentando a hipótese de que tais substâncias podem exercer potencial viciante [28]. Corroborando esses dados, o presente estudo constatou maior frequência de adição por comida em crianças com sobrepeso/obesidade. Embora a adição por comida não seja classificada como transtorno mental, ela já é citada como uma problemática para o desenvolvimento de obesidade e outros transtornos alimentares [29].
Este estudo revelou que crianças que apresentavam sintomatologia de comportamento alimentar aditivo, quase que em sua totalidade também apresentavam sinais de ansiedade. Atualmente, a frequência de transtorno de ansiedade se tornou tão trivial, que já é reconhecido como transtorno comum e não raro, sendo a presença de ansiedade na vida adulta, quase que em sua maioria apresenta início na infância [30-32]. É importante ressaltar que descobrimos que os escores de YFAS-C e ansiedade estavam positivamente correlacionados, sugerindo que a gravidade desses transtornos pode afetar-se mutuamente. Estes achados coincidem com os obtidos em um estudo realizado com adolescentes egípcios, onde os autores demonstraram a coexistência de adição por comida com ansiedade e depressão [33]. Além disso, estudo recente de revisão sistemática que incluiu 27 estudos relatou associação significativa entre adição por comida e sintomas depressivos/ansiosos em adolescentes [16].
Vale ressaltar que toda a aplicação dos questionários e coleta de dados foi realizada por um único pesquisador, sendo um ponto forte para o desenvolvimento da pesquisa devido redução de vieses nas aferições. Outro ponto importante da metodologia foi a padronização dos horários de coleta dos dados antropométricos, os quais foram coletados sempre pela manhã em todas as turmas. Uma limitação deste trabalho foi o número amostral, sendo necessário mais estudos, com um número populacional maior, para fortalecer os resultados encontrados.
Descreveu-se a coexistência de adição por comida, transtorno de ansiedade e sobrepeso/obesidade em crianças, demonstrando o início precoce destes transtornos e enfatizando a necessidade de estratégias proativas de saúde pública para abordar esta problemática na população pediátrica.
Conflitos de interesse
Os autores declaram não haver conflitos de interesse de qualquer natureza.
Fontes de financiamento
Financiamento próprio.
Contribuição dos autores
Concepção e desenho da pesquisa: Carvalho BS, Franco MCP; Coleta de dados: Carvalho BS; Análise e interpretação dos dados: Carvalho BS, Franco MCP; Análise estatística: Franco MCP; Redação do manuscrito: Carvalho BS, Franco MCP, Viudes DR; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Viudes DR, Carvalho BS, Franco MCP.
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