Geronto Bras. 2025;1(1):39-54
doi: 10.62827/gb.v1i1.0005

ARTIGO ORIGINAL

Envelhecer criativamente como mulher: uma leitura salutogênica em um contexto de vulnerabilidade

Victor José Machado de Oliveira1, Cícera Gisela Queiroz de Souza1, Ana Beatriz de Oliveira Ferreira1, Rafaella de Seixas Seixas1, Inês Lemos Pereira1, Inês Amanda Streit1

1Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Manaus, AM, Brasil

Recebido em: 28 de abril de 2025; Aceito em: 26 de maio de 2025.

Correspondência: Inês Amanda Streit, inesamanda@ufam.edu.br

Como citar

Oliveira VJM, Souza CGQ, Ferreira ABO, Seixas RS, Pereira IL, Streit IA. Envelhecer criativamente como mulher: uma leitura salutogênica em um contexto de vulnerabilidade. Geronto Bras. 2025;1(1):39-54. doi:10.62827/gb.v1i1.0005

Resumo

Introdução: A população mundial está envelhecendo e a maioria das pessoas longevas viverão em países em desenvolvimento. Um olhar que considere o envelhecimento em contextos de vulnerabilidade social para além de uma perspectiva biológica é necessário. A teoria da salutogênese, focada no senso de coerência, oferece compreensões sobre como as pessoas longevas mobilizam recursos generalizados de resistência (RGR) e enfrentam estressores no curso da vida. Objetivo: Analisou-se os estressores e os RGR presentes no envelhecimento criativo de uma mulher longeva em um contexto de vulnerabilidade social. Métodos: Uma pesquisa qualitativa foi realizada com o método de história de vida. Uma mulher longeva, residente em Manaus (Amazonas, Brasil), participou do estudo. Uma entrevista aberta, não estruturada com um roteiro invisível foi conduzida. Ela focou nos estressores, nos RGR e nas práticas corporais e atividades físicas presentes ao longo da vida. Resultados: Desafios e estratégias de enfrentamento foram destacados em dois grupos de categorias: 1) Estressores: condições precárias de vida; violências sofridas na infância e juventude; opressões devido ao gênero; impactos do trabalho; diversos riscos ao longo da vida; eventos imprevistos. 2) RGR: brincadeiras desde a infância até a vida adulta; redes de apoio social; capacidades pessoais; reflexões sobre a vida e a longevidade. Conclusão: Estressores e RGR estão presentes no envelhecimento criativo de forma complexa e vinculados às condições de vida da participante. Os dados indicam que ser mulher é um estressor significativo. Políticas públicas são necessárias para combater o machismo e patriarcado instalados na sociedade e faz-se necessário potencializar os RGR para a mudança das estruturas socioculturais para que mulheres em contexto de vulnerabilidade social acessem melhores condições de vida e suporte social.

Palavras-chave: Envelhecimento Saudável; Senso de Coerência; Vulnerabilidade Social; Perspectiva de Gênero; Violência Contra a Mulher.

Abstract

Aging creatively as a woman: a salutogenic reading in a vulnerability context

Introduction: The world population is aging, and most long-living people will live in developing countries. A perspective that considers aging in socially vulnerable contexts, which goes beyond a biological perspective, is needed. The salutogenic theory focused on the sense of coherence offers some insights into how long-living people use generalized resistance resources (GRR) and face stressors during their lives. Objective: The study aims to analyze stressors and the GRR present in the creative aging of a long-living woman in a socially vulnerable context. Methods: Qualitative research was conducted using the life story method. An older woman living in Manaus (Amazonas, Brazil) participated in the study. An open, non-structured interview with an invisible script was conducted focusing on stressors, GRR, body practices, and physical activities during her life. Results: Challenges and facing strategies were highlighted into two category groups: 1) Stressors: precarious life conditions; violence suffered during childhood and youth; oppressions due to gender; work impacts; several risks during life; unexpected events. 2) GRR: plays from childhood to adulthood; social support systems; personal capabilities; reflections about life and longevity. Conclusion: Stressors and GRR are present in creative aging complexly connected to the participant’s life conditions. Data indicate that being a woman is a significant stressor. Public policies are needed to combat sexism and patriarchy established in society. Summing up, there is a need to potentialize the GRR to change sociocultural structures so that women in socially vulnerable contexts can access better life conditions and social support.

Keywords: Healthy Aging; Sense of Coherence; Social Vulnerability; Gender Perspective; Violence Against Women.

Resumen

Envejecer creativamente como mujer: una lectura salutogénica en un contexto de vulnerabilidad

Introducción: La población mundial está envejeciendo y la mayoría de las personas mayores vivirán en países en desarrollo. Es necesaria una perspectiva que considere el envejecimiento en contextos de vulnerabilidad social más allá de una perspectiva biológica. La teoría de la salutogénesis, centrada en el sentido de coherencia, ofrece información sobre cómo los individuos longevos movilizan recursos de resistencia generalizados (RRG) y afrontan factores estresantes a lo largo de la vida. Objetivo: Se analizaron los estresores y RRG presentes en el envejecimiento creativo de una mujer longeva en un contexto de vulnerabilidad social. Métodos: Se realizó una investigación cualitativa utilizando el método de historia de vida. Participó en el estudio una mujer longeva, residente en Manaos (Amazonas, Brasil). Se realizó una entrevista abierta, no estructurada y con un guión invisible. Se centró en los factores estresantes, los RRG y las prácticas corporales y actividades físicas presentes a lo largo de la vida. Resultados: Los desafíos y estrategias de afrontamiento se destacaron en dos grupos de categorías: 1) Estresores: condiciones de vida precarias; violencia sufrida en la infancia y la juventud; opresiones por razón de género; impactos del trabajo; diversos riesgos a lo largo de la vida; acontecimientos imprevistos. 2) RRG: juegos desde la infancia hasta la edad adulta; redes de apoyo social; capacidades personales; Reflexiones sobre la vida y la longevidad. Conclusión: Los estresores y los RRG están presentes en el envejecimiento creativo de forma compleja y vinculados a las condiciones de vida de los participantes. Los datos indican que ser mujer supone un factor estresante importante. Las políticas públicas son necesarias para combatir el machismo y el patriarcado en la sociedad. Es necesario potenciar la RRG para cambiar las estructuras socioculturales y garantizar que las mujeres en contexto de vulnerabilidad social tengan acceso a mejores condiciones de vida y apoyo social.

Palabras-clave: Envejecimiento Saludable; Sentido de Coherencia; Vulnerabilidad Social; Perspectiva de Género; Violencia Contra la Mujer.

Significado translacional

A população mundial está envelhecendo e a maioria das pessoas longevas viverão em países em desenvolvimento (contextos de vulnerabilidade social). Mulheres parecem sofrer mais nesses contextos. Estressores e recursos generalizados de resistência (RGR) estão presentes no envelhecimento criativo de forma complexa e vinculados às condições de vida. Ser mulher é um estressor significativo. Políticas públicas são necessárias para combater o machismo e patriarcado instalados na sociedade. Em suma, é necessário potencializar RGR para a mudança das estruturas socioculturais e que mulheres em contexto de vulnerabilidade social acessem melhores condições de vida e suporte social.

Introdução

Até 2050 haverá cerca de dois bilhões de pessoas com mais de 60 anos de idade e 80% delas viverão em países em desenvolvimento [1]. Haverá um aumento significativo do número de pessoas com mais de 80 anos. Geralmente, em países de renda média e alta essas pessoas vivem uma vida boa e com saúde [2]. No entanto, o que significa viver mais para as pessoas em contextos de vulnerabilidade social? Nos interessamos por esse questionamento desde o cenário brasileiro, especificamente, na região do Amazonas.

A velhice não se reduz às perdas biológicas e aos processos de adoecimento. A velhice é construída como tempo de novas conquistas, busca de prazer e satisfação pessoal [3].

Devemos superar o mito de que a pessoa mais velha é um ser passivo e frágil. Um número substancial de pessoas mais velhas apresenta características de resiliência e capacidade de gerenciamento dos desafios enfrentados no decorrer da vida [2]. É preciso compreender as diversas formas que o envelhecimento é concebido, que são representações sobre a velhice e os papéis sociais que os nossos velhos exercem [4]. Conceber a velhice desse modo orienta a análise das outras etapas da vida.

Buscamos compreender o que as pessoas fazem no decorrer de suas vidas para ter um envelhecimento criativo. O envelhecimento criativo é um processo que se desenvolve durante a trajetória de vida (da concepção até a velhice). Destaca que não basta apenas ser (fisicamente) ativo, mas poder criar um mundo para se viver [5]. O curso (ou trajetória) de vida abrange processos biológicos, sociais e psicológicos que levam a transições ou eventos planejados e não planejados [2].

Aqui, trazemos uma história de vida de uma mulher num contexto de vulnerabilidade social. O construto de gênero contribui para uma análise crítica sobre o envelhecer sendo mulher numa sociedade patriarcal e machista. Mulheres são oprimidas com práticas discriminatórias e violências no decorrer da vida [6]. Como chave de leitura, elegemos a teoria da salutogênese e seus constructos de senso de coerência (SdC), recursos generalizados de resistência (RGR) e estressores [7].

Objetivamos analisar os estressores e os RGR presentes no envelhecimento criativo de uma mulher longeva em um contexto de vulnerabilidade social.

Salutogênese e envelhecimento

A salutogênese é uma teoria de promoção da saúde. Ela busca respostas para o mistério da saúde: por que as pessoas, apesar de enfrentarem estressores cotidianamente, mantém-se saudáveis ou se recuperam de processos de adoecimento? Para responder a essa pergunta, foi elaborado o constructo do SdC [8].

O SdC é uma orientação global no qual as pessoas percebem a vida como algo estruturado que seja compreensível, gerenciável e significativo. Três pilares constituem o SdC: 1) compreensibilidade capacidade cognitiva de compreender a vida e seus fenômenos; 2) maleabilidade capacidade comportamental de gerenciar os RGR disponíveis para enfrentar os estressores; 3) significância capacidade emocional de conferir sentido e significado para a vida [8].

Quanto mais forte for o SdC de uma pessoa, mais condições ela terá de acessar RGR para enfrentar os estressores que, inevitavelmente, se fazem presentes na vida cotidiana. Os RGR são elementos físicos, biológicos, sociais e culturais que permitem um manejo bem-sucedido dos estressores. Os estressores, por sua vez, são elementos que causam um estado de tensão na pessoa, podendo evoluir para um estado de estresse e adoecimento [8].

A presença de RGR e de estressores dependem do contexto sociocultural. Daí, emerge a metáfora do rio da vida. Estamos no grande rio da vida e nunca estamos próximos da margem. Nesse sentido, precisamos aprender a nadar (resposta salutogênica) em vez de apenas sermos salvos (resposta patogênica). Mas, não basta apenas saber nadar, pois, o rio pode ser impróprio para a natação. Haverá momentos em que o rio da vida deverá ser transformado. A salutogênese se preocupa na relação nadador-rio expressa na dinâmica relação da agência individual com as condições socioculturais [9].

Uma orientação salutogênica para o envelhecimento não se centra na idade cronológica, mas, no processo de envelhecer bem. Envelhecer não é a degradação biológica e mental do corpo, mas um processo de desenvolvimento humano [10]. O SdC se desenvolve ao longo da vida e aumenta com a idade. Ele apresenta correlações com uma melhor saúde física, social e mental. No envelhecimento criativo, o SdC pode auxiliar pessoas mais velhas a: 1) reduzir processos de vulnerabilidade e imprevisibilidade no decorrer da vida (compreensibilidade); 2) apoiar a adoção de ações ativas para a manutenção da saúde (maleabilidade); e 3) possibilitar a reflexão no envelhecimento para a busca de motivação para viver cada dia com propósito (significância) [2].

O SdC, o suporte social e a autoestima são elementos que contribuem para a vida das pessoas mais velhas. Logo, comunidades que sejam amigas das pessoas mais velhas são necessárias, visto que nelas são oportunizadas a participação social, o emprego, a atividade física, a atividade espiritual e as ações de voluntariado. Uma vez que a participação na vida social é estimulada, na tomada de decisões e no planejamento, o sentimento de controle e empoderamento aumenta e contribuem para o fortalecimento do SdC [2].

Métodos

Conduzimos uma pesquisa qualitativa em que utilizamos o método de história de vida. A história de vida foi produzida a partir das narrativas sobre as experiências do curso de vida ocorridas no cotidiano. A metodologia nos permite a criação de laços de confiança com quem narra sobre sua vida. Trata-se de um processo de recuperar tempos-espaços anteriores que se conectam com o presente do narrador-protagonista [11]. Isso nos permite perceber como “as pessoas vivem seu próprio envelhecimento em diferentes contextos sociais, culturais e históricos” [12].

A história de vida foi narrada por uma mulher longeva que contemplou os critérios de inclusão do estudo: ter mais de 80 anos; ter as capacidades cognitivas preservadas; residir em Manaus/Amazonas/Brasil. A escolha se deu de maneira convencional, pois ela participa de um programa que oferta práticas corporais e atividades físicas na Universidade Federal do Amazonas.

Em 29 de janeiro de 2023, na residência da participante, realizamos uma entrevista em profundidade, aberta e não estruturada. Seguimos um roteiro invisível que incluiu os pontos: 1) estressores presentes no decorrer da vida; 2) RGR presentes/mobilizados no decorrer da vida; 3) práticas corporais e atividades físicas presentes no decorrer da vida. A participante foi convidada a falar livremente sobre sua vida. Quando necessário, perguntas foram acrescidas para aprofundamento do que foi dito. A entrevista foi gravada em aplicativo de celular e armazenada em repositório privado. Posteriormente, o áudio foi transcrito e corrigido gramaticalmente. A transcrição foi apresentada à participante para validação do conteúdo.

Uma análise de conteúdo foi realizada a partir da transcrição. Primeiro, procedemos uma leitura flutuante da história de vida criando maior familiaridade e conhecimento do conteúdo. Depois, codificamos os conteúdos em temas relacionados aos estressores e aos RGR. Realizamos três movimentos de agrupamento dos temas (inicial, intermediário e final) a partir de conceitos norteadores que apresentassem semelhanças ou associações. Por fim, procedemos à inferência e interpretação com base na literatura escolhida [13].

O estudo obedeceu aos preceitos éticos de pesquisa e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas sob parecer de número: 5.309.998. A participante foi esclarecida quanto à sua participação e assinou um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

A história de vida narrada pela senhora Cacilda (nome fictício) originou uma transcrição com 24 páginas que foi analisada a partir de dois grandes grupamentos de categorias. O primeiro foi relacionado aos estressores: 1) Condições precárias de vida e violências sofridas na infância e juventude; 2) Ser mulher como fonte de opressões; 3) Trabalho e processos de adoecimento; 4) Riscos diversos no decorrer da vida; 5) Eventos não previsíveis que impactaram a vida. O segundo grupamento foi relacionado aos RGR: 1) Brincadeiras e festas da infância à vida adulta; 2) Redes de apoio e suporte social; 3) Capacidade e atitudes pessoais; 4) Conquistas e reflexões sobre a vida e a longevidade.

Estressores

As condições precárias de vida e violências sofridas durante a infância destacam estressores observados na história da senhora Cacilda. Ela conta sobre a vida no interior: “[...] não tínhamos água encanada. Nós tínhamos que pegar água lá no rio. [...] a luz ia embora às dez horas da noite” (Entrevista). Conta sobre as violências sofridas e os castigos físicos: “[...] o meu pai era cearense, daquele ruim mesmo. E quando pegava [a pessoa] era meio: ‘diabo vem cá’. [...] Quando ele me procurava eu estava no topo da árvore. Aí quando descia, eu ia para a ‘peia’ [apanhar]” (Entrevista). “Desde criança que eu apanhava por causa de festa. [...] eu apanhava por tudo [sorriso]” (Entrevista).

Outros estressores se relacionam ao fato de ser mulher em uma sociedade patriarcal e machista. A senhora Cacilda nos conta:

[...] até os 14 anos, 15 anos. [...] Aí, apareceu quem? O pai do meu filho. [...] esse aí foi um estrago da minha vida. Não por meu filho ter nascido. Mas, pela consequência que houve. Eu ainda estava estudando. [...] Como era colégio de freira, só me casaram no civil [...]. O padre me expulsou lá do colégio. [...] Aí eu não estudei mais e fui viver pela casa dos outros (Entrevista).

A primeira opressão relatada foi a expulsão do colégio e a perda do direito de estudar. Outras opressões também foram relatadas: “eu saí de lá da casa, por causa do filho da mulher que queria me agarrar” (Entrevista).

[...] chegou um gaiato lá querendo dançar comigo. Mas, estava bêbado. Aí eu não quis. Ah! Aí a confusão começou. [...] ‘Você não entra mais para dançar. Se você for dançar eu quebro essa porcaria’. Eu saí e não fui mais dançar. [...] Muito, muito medo (Entrevista).

[...] ele ficou com raiva [...]. Aí disse: ‘Cadê minha espingarda?’ Eu tinha guardado ela dentro do guarda-roupa. [...] E ele ficou doido querendo a espingarda. Queria me dar um tiro. Ele ia acabar comigo (Entrevista).

Os relatos evidenciam inseguranças e opressões. Observamos os assédios e a tentativa de feminicídio sofridos. A condição de ser mulher destaca sua objetificação, inclusive, nos relacionamentos abusivos com interdições, traições, frustrações e “fugas”: “Aí, eu fui embora fugindo da situação aqui. Eu não queria saber de homem mais nenhum na minha vida” (Entrevista).

Eu não parei mais em canto nenhum. Já tinha deixado a casa da dona Cristiana. Fui para casa da dona Carmem, para casa da Dona Creusa. Aluguei um apartamento e não deu certo. [...] Aí do apartamento, fui morar lá em Botafogo. Mas, não deu certo. Aí eu queria uma coisa e não dava certo (Entrevista).

A senhora Cacilda indica a sensação de que nada estava dando certo em sua vida. As “fugas” diante das adversidades parecem ser uma tentativa de se livrar dos estressores. Mas, isso não parecia surtir efeito, pois ela não podia fugir de sua “condição de mulher”. No fim, ela acabou aceitando certas condições precárias para poder cuidar da sua segunda filha.

Eu não sabia fazer nada. Só sabia costurar. Eu já tinha outra filha. Fiquei com vergonha de levar novamente para mamãe tomar conta, pois ela já tinha criado um. Não era justo eu jogar de novo o meu problema para ela (Entrevista).

Outros estressores na vida da senhora Cacilda estão relacionados ao trabalho e processos de adoecimento relacionados à sua lógica e estruturação. Ela relatou ter sido empregada doméstica (cozinhar, lavar e passar) e costureira. Em outro momento, ela trabalhou em uma clínica de radiologia. Ela narra que aprendeu tudo “na marra” e suas memórias indicam os processos de insalubridade no trabalho.

Eles me puxavam a orelha, porque às vezes dava errado. Ele começou a brigar comigo [...]. Eu chorava desesperada. Mas, assim mesmo, eu aprendi ‘na marra’. [...] eu só saí porque eu fiquei com problema na coluna. [...] Eu subia e descia correndo aquelas escadas vestida com a chapa de chumbo, por causa dos raios-x. [...] eu deveria usar aquela gargantilha de chumbo. Mas, eles nunca me deram. E eu sofria da garganta. [...] E você também se consome, porque aqueles a radiação afeta todo seu organismo. Tanto que todo técnico em radiologia tem que trabalhar só 20 anos. Não pode mais do que isso, por causa da radiação. [...] E o Doutor não brincava mais comigo, porque quando eu quebrei meu pé, passei uns três meses sem ir. Ele me chamava de ‘velha decrépita’ (Entrevista).

O relato apresenta a memória de um ambiente de trabalho hostil, de duras cobranças e pouca segurança. Em sua compreensão, isso afetou-lhe fisicamente e psicologicamente. Ainda, observamos o etarismo sofrido quando ela necessitou se ausentar do trabalho, devido aos problemas causados por ele. Essa conjuntura precária a levou a processos de adoecimento: “Eu estive doente mesmo. [...] dava umas fisgadas na minha coluna. [...] andava para lá e pra cá, desesperada chorando. [...] é a tal da fibromialgia. Doía tudo” (Entrevista).

[...] o peso da idade cansa. Dói. Porque você olha para trás e vê que era jovem. E agora, você não pode fazer. Aí cansa. Você não pode fazer. Fica mais difícil ainda. [...] Puxa vida! [...] às vezes você quer fazer, mas você não tem a força. Seu organismo já está debilitado, já está no limite da força e você tem que parar mesmo (Entrevista).

O relato parece indicar que o problema do “peso da idade” no envelhecimento está associado às condições precárias de vida e de trabalho que causam uma degradação biopsicológica. Nossa participante diz: “eu sou aposentada por invalidez” (Entrevista).

Outro grupo de estressores relatados, se relacionam aos riscos no decorrer da vida. Há riscos externos como a falta de coletes salva-vidas nos passeios de barco, pois “quem não soubesse [nadar], estava lascado. Ia ficar lá para o jacaré comer” (Entrevista). Também foram mencionados riscos como o tabagismo, a inatividade física e a exposição à radiação solar. Esses riscos estavam associados às condições de vida, por exemplo, quando relata: “Mas, de ter uma atividade física, nunca tive. Andava sempre trabalhando na casa de um e de outro. A minha atividade foi essa de tomar conta dos filhos dos outros” (Entrevista).

As memórias ainda destacam eventos não previstos que impactaram a vida da senhora Cacilda. Ela relata o falecimento do pai e da mãe e o aborto espontâneo de dois filhos: “Ele saiu lá do consultório e jogou dentro do lixo os dois que eu tinha abortado” (Entrevista). Em outro momento, houve um incêndio no local em que ela trabalhava que trouxe a memória: “Acabou o trabalho, porque aí ele [o patrão] ficou com prejuízo” (Entrevista). Além disso, ela destacou a emergência da pandemia de Covid-19 que levou à paralisação das atividades comunitárias que realizava.

Recursos Generalizados de Resistência

A vida da senhora Cacilda também foi cercada por RGR. As brincadeiras e festas que vão da infância à vida adulta emergem como um primeiro grupo de RGR. Atividades cotidianas como ir buscar água no rio se tornava “brincadeira, já que era criança” (Entrevista). Outras memórias indicam:

[...] a gente gostava da molecada. A gente brincava muito, muito mesmo. À noite, a gente ficava brincando de cantigas de roda: Fui ao Tororó. [...] eu jogava bolinha, eu soltava papagaio, eu brigava com os moleques quando estava perdendo [risadas], eu jogava pião (Entrevista).

Os relatos indicam que sua vida ganhava sentido a partir das brincadeiras, pois as condições adversas eram suplantadas pelo lúdico. Também vemos a presença da música na infância: “Tinha uma vitrola. A gente pegava os discos e botava lá. E ficava lá do lado dele [do pai] escutando disco” (Entrevista).

A senhora Cacilda também relata: “E eu gostava de festa. Vivia arranjando festa para eu ir [falou sorrindo]” (Entrevista). Outras memórias emergiram: “Tinha um salão bonito. [...] a gente brincava mesmo. Eu sei que eles faziam várias festas de quadrilha e do Natal. [...] foi muito boa a minha juventude” (Entrevista). E além da festa, também surgiram mais elementos da cultura: “Foi quando eu estudei no Benjamin Constant [falou sorrindo]. Tinha um cinema bem perto ali. [...] Aquilo ali foi nossa via de escape” (Entrevista). As festas, as brincadeiras e o acesso à cultura (cinema) aparecem como experiências do encontro, do prazer e da diversão. Elas também foram destacadas como uma “via de escape”. Essas memórias eram sempre acompanhadas de sorrisos, o que indica a atribuição de sentidos e significados a elas.

O estabelecimento de redes de apoio e suporte social foram identificadas nas memórias da senhora Cacilda. Elas agiram como RGR que auxiliaram ela no enfrentamento de diversos estressores e superação de barreiras no decorrer da vida. As seguintes redes foram observadas.

1) A rede familiar durante a primeira gravidez: “eu fui lá para a casa da minha cunhada. Aí a minha cunhada me dava o alimento” (Entrevista). “Nessa altura do campeonato, a minha cunhada mais nova tinha levado meu filho para a mamãe” (Entrevista).

2) A rede das pessoas próximas que ajudaram ela com moradia, apoio para estudar e trabalhar: “Arranjei um namorado. [...] E ele disse: ‘você quer estudar?’ Eu disse: ‘não sei. Quero fazer um profissionalizante’. [...] Ele começou a pagar. E eu aproveitei a oportunidade” (Entrevista). “Eu fui para casa de uma amiga lá na Duque de Caxias, ali em frente da Balbina. Lá eu era bordadeira com ela” (Entrevista). “Dona Cristiana, minha mãezona. A dona Cristiana [chorou emocionada] me acolheu muito bem. Muito boa aquela senhora. Então, eu fui embora. Fui para o Rio de Janeiro” (Entrevista).

3) A rede comunitária que lhe ajudou a acessar os saberes da medicina popular para o tratamento e cura de dores:

A menina me disse: ‘passa o creme de jiquitaia’ [uma espécie de formiga]. Está legal. Então, me dá a jiquitaia para passar. [...] é bom. Pelo menos, está aliviando [a dor]. Eu achei que aliviou. Agora me ensinaram com o repolho. Eu já coloquei. Já tomei remédio sucupira. Tomei jucá. Tudo o que você imaginar de remédio caseiro, eu já tomei (Entrevista).

4) A rede religiosa que proporcionou acolhimento e aconselhamento: “Eu estava chorando e contando para o padre. Eu disse: ‘eu sei que eu estou no inferno [...]’. ‘Não se preocupe, vai rezar. Isso aconteceu porque a pessoa é ignorante. Você é uma pessoa boa. Você trabalha lá para a igreja, [...] para Jesus. Ele não vai lhe jogar no inferno’” (Entrevista).

5) A nova rede familiar com o casamento que lhe permitiu ter maior estabilidade: “Mas, depois ele resolveu casar. [...] casamos no civil e no religioso. [...] Então, teve mais isso daqui que ajudou a cabeça da velha, para eu não ficar louca” (Entrevista).

6) A rede próxima com uma pessoa que lhe ajudou a cuidar da segunda filha. Inclusive, isso lhe permitiu voltar a estudar: “a menina tomava conta da Bruna de tarde e eu ia para a aula” (Entrevista).

7) A rede médica para o tratamento dos adoecimentos: “Aí a doutora [reumatologista] me deu muitos remédios. Fazia compressa. Botava creme, óleo e tudo mais o que você imaginar” (Entrevista).

8) A rede social. Na época que considerava a cidade mais segura quanto à violência: “Naquele tempo, a gente andava sossegada. Não tinha ladrão. Tanto que era algum ou outro que fazia essas coisas” (Entrevista).

9) A rede de apoio institucionalizada para acessar as práticas corporais e atividades físicas durante a velhice: “Que eu sempre fui assim mesmo: gorda. E não tenho lembrança. Agora eu faço [atividade física]” (Entrevista).

Outro grupo de RGR observados se relacionam com as atitudes pessoais da senhora Cacilda. Identificamos a capacidade de aprendizado de habilidades domésticas e profissionais. Isso ajudou ela a gerenciar vários acontecimentos da vida: “Lá eu fazia tudo. [...] um dia, ela mandou eu cozinhar. Aí eu cozinhei. E as professoras já queriam todo dia almoçar lá” (Entrevista).

[...] aprendi a radiologia lá na hora. Eu fazia tudo. Inclusive, o mamógrafo era manual. [...] quando a gente quer uma coisa, tem que batalhar. Olha, eu pensei que não ia conseguir aprender tão rápido a manusear aquelas máquinas todas (Entrevista).

A bondade e a generosidade são atitudes presentes nas memórias narradas. Elas parecem representar a ação cotidiana de ajudar os outros: “Eu fiquei. Eu já era enfermeira. Eu tinha que estar lá de hora em hora [...] dando o remédio da menina” (Entrevista). “[...] a menina me chamou para ir para ser ministra da eucaristia. Então, nós fizemos o curso. Eu fui. [...] graças a Deus, eu trabalhei muito nesse São Lázaro, levando comunhão para os doentes” (Entrevista). A resiliência também foi uma característica que a senhora Cacilda atribui como força para concluir os seus estudos: “Eu terminei o Ensino Fundamental, com todo esse sacrifício. A vontade foi minha. Então, tem que aguentar. Porque, a pessoa só consegue [...] se tiver vontade própria” (Entrevista).

Outras atitudes observadas estão na postura da senhora Cacilda de enfrentamento contra as dores: “Eu não quero ficar parada. [...] não é à toa que eu estava querendo ficar boa do olho. Para eu poder costurar”. Compreendendo que a vida está sempre em movimento, ela conta sobre um Hobbie: “Eu me entretinha muito fazendo crochê. [...] Eu fazia crochê de brincadeira [...]. Era minha distração” (Entrevista).

A fé e a espiritualidade ganham uma dimensão altamente significativa para a senhora Cacilda. Ela destaca que seres em uma dimensão superior lhe protegem e dão sentido para continuar vivendo. “Graças a Deus que agora eu ando. Mas, eu ando porque eu fiz uma cirurgia espiritual” (Entrevista). “Eu compreendi que tinha que chegar mais perto de Deus, nas minhas orações, nas minhas rezas” (Entrevista).

[...] porque a gente é fraco. E, nessas horas, que você está sentindo na pele aquelas coisas, você tem que ter a motivação. Quem? Jesus! Você está tão decepcionada com o mundo, que você se agarra com Ele. E a mãezinha está lá, para te puxar, para te ajudar. Eu gosto muito da minha vida: Mariazinha. Isso eu te digo, se não fosse ela, metade dessa vida já tinha ido embora (Entrevista).

Com um alto senso de que não está sozinha, a senhora Cacilda apresenta memórias que representam um último grupamento de RGR que se relaciona com as conquistas e as reflexões sobre a vida e a longevidade. Ela se diz surpresa de ter chegado tão longe: “eu pensava que eu nem ia chegar aos 60 anos [...]. E agora, com 80 anos, eu estou aqui contando uma história velha” (Entrevista). Ela pensou que estaria “toda arrebentada”, mas, complementou: “ainda estou em pé. Ainda estou fazendo ginástica” (Entrevista).

E agora, graças a Deus, vamos esperar até o dia que Ele vai me levar daqui. Espero ter pagado todas as minhas dívidas antes de voltar. Porque não tem outra coisa para fazer. Já vivi mesmo. Já fiz besteiras. Mas, eu estou aqui [faz gesto com as mãos] pedindo a Deus que me ajude e faça tudo dar certo [...] (Entrevista).

Outro momento importante na velhice foi a conquista da aposentadoria aos 60 anos: “agora eu estou aposentada. Graças a Deus! Tenho meu dinheiro para comprar meus remédios” (Entrevista). Diante das conquistas e reflexões, a senhora Cacilda traz um conselho para as pessoas mais jovens:

A única coisa que eu digo é o seguinte: viva com intensidade a sua juventude, a sua mocidade. E procure fazer o bem para todo mundo. Não é porque ele é pobre, que você não vai fazer o bem para ele. Você tem que fazer o bem para todas as pessoas. Até o animal que está sofrendo, você tem que ajudar. Porque, você não sabe da tua caminhada e o que você vai encontrar à sua volta. Está subindo e você está vendo uma coisa. Quando descer, vai ver outra. Então, você tem que fazer o bem, sem olhar a quem, com muito amor ao próximo. Porque, vale a pena a gente ser bom e ajudar quem está precisando [...]. Porque, um dia você já procurou uma mão para lhe ajudar, para te suspender do chão. Você já recebeu. Então, você tem que ajudar com toda sua vontade [...], de ser aquela pessoa boa, sem desmerecer ninguém. Porque nossa vida é muito curta (Entrevista).

O conselho da senhora Cacilda destaca a compreensibilidade da “brevidade da vida” como um recurso reflexivo construído numa relação espaço-temporal. Isso exige uma postura (cri)ativa para se viver intensamente. Ela destaca que devemos sempre estar na posição de aprendizado diante das imprevisibilidades. E isso coloca a necessidade de uma ética de cuidado para com o outro. Por fim, a gratidão emerge como um motor para se mover (cri)ativamente no mundo.

Discussão

Neste artigo analisamos os estressores e os RGR presentes no envelhecimento criativo de uma mulher longeva em um contexto de vulnerabilidade social. Destacamos que ambos se fazem presentes simultaneamente nas experiências vividas. Antonovsky [7] coloca que os estressores são onipresentes e, por isso, é necessário que o SdC seja fortalecido para que a pessoa mobilize RGR para o enfrentamento bem-sucedido deles.

É importante chamar a atenção para a memória, a qual reflete todo um universo de representações e significados. Ela se constitui das representações que os indivíduos fazem de sua própria vida [14]. A história da senhora Cacilda traz as lembranças “emolduradas” num espaço de interação subjetiva, as quais foram se renovando pelos novos sentidos e significados que ela foi adquirindo nos momentos vividos. Isso é revelado por meio da sua perspectiva de construção da identidade de ser velha e suas estratégias de afirmação nos espaços sociais.

Este lugar social e cultural em sua história é um determinante para a presença de estressores e RGR. Os dados indicam que um contexto de vulnerabilidade social contribui para que estressores de diversas ordens criem tensionamentos e processos de adoecimento. Em nossas análises, compreendemos que a mobilização dos RGR nem sempre suplantam a tensão gerada pelos estressores. Isso acaba gerando o estado de estresse que interage com os processos de adoecimento da participante. No entanto, sem os RGR, provavelmente, o desfecho da história dela poderia ter sido ainda pior. Nesse sentido, nossa análise percorre o “mistério da saúde” para um envelhecimento criativo na história de vida da participante deste estudo.

Um primeiro destaque vai para as experiências de vida na infância e juventude. Elas são consideradas por Antonovsky [8] como importantes para a construção do SdC. As brincadeiras emergem como um potente recurso de vida e desenvolvimento, visto que esse é o ofício da criança [15]. É nessa dimensão que o lúdico ganha potência. O jogo emerge como ação voluntária que dá sentido à ação e transcende as necessidades imediatas da vida humana [16]. Oliveira [17] observou o jogo como um RGR que fortalece o SCO, quando possibilita a criação de uma ordem para o mundo (compreensibilidade), dá sentido para a ação diante dos desafios (significância) e capitaneia a “suspensão” da tensão experimentada (maleabilidade). O lúdico pode ser uma fonte protetora diante de contextos de vulnerabilidade.

Outro destaque ressalta a questão de gênero. Ser mulher se configurou como um dos estressores que merece maior destaque na história de vida apresentada. A revisão de Silva e Oliveira [18] destaca que a violência contra a mulher é um fenômeno sociocultural. Bourdieu [19] indica que a sociedade, por meio da experiência dóxica, constrói e reitera divisões que são arbitrárias e naturalizadas. Isso (re)produz a dominação masculina, inclusive, no plano simbólico das relações desiguais.

A violência contra a mulher afeta o desenvolvimento humano e é considerada um problema de saúde pública no mundo [20]. As mulheres são violentadas, majoritariamente, pelo simples fato de pertencerem ao sexo feminino. As consequências das violências sofridas pelas mulheres são: danos físicos imediatos, efeitos de longo prazo como depressão, ideação suicida, gravidez indesejada, até mesmo a morte (feminicídio). O Brasil criou legislação específica de proteção à mulher (Lei Maria da Penha) [18].

As experiências estressoras vividas pela senhora Cacilda confirmam a discussão de gênero no envelhecimento da mulher em uma sociedade patriarcal e machista. Observamos as opressões sofridas nos âmbitos público e privado que afetaram significativamente a sua vida. Isso evidenciou práticas de discriminação e violências sofridas pelo único fato de ser mulher [6]. Nossas análises indicam que nascer mulher em sociedades com formatações socioculturais calcadas no patriarcado machista se destaca como um grande estressor. Por isso, é necessária a mobilização de RGR para sobreviver sob tais condições de vida. As redes de apoio diversas foram observadas como RGR que salvaguardaram nossa participante em vários episódios de tensão da vida.

Outro elemento que nos chamou a atenção foi o trabalho. O trabalho é responsável por gerar condições financeiros para a subsistência, mas também é visto como um estressor. As condições do trabalho criam determinações para os processos de adoecimento. Nossas análises nos levam a compreensão de que o processo de envelhecimento, por si só, não parece ser o causador das enfermidades da participante. Ou seja, os dados parecem indicar que o processo de envelhecimento articulado com o trabalho está vinculado à manifestação de desgastes biopsicológicos.

Costa et al. [21] lançam luz à discussão destacando a ambiguidade do trabalho. Por um lado, ele é mantenedor da vida e construtor de identidade. Por outro, cria mecanismos de alienação e exploração. O modo de produção capitalista visa, com o uso da força de trabalho, o acúmulo do capital. Assim, multiplicam-se políticas e discursos neoliberais que reduzem as redes de proteção da classe trabalhadora. Ainda mais, o sistema capitalista divide o mundo em duas classes fundamentais: os donos dos modos de produção (capitalistas); e os trabalhadores (que vendem sua força de trabalho para os capitalistas).

As desigualdades entre essas classes criam uma determinação fundamental para os processos de adoecimento. Barata [22] diz que essas desigualdades fazem mal para a saúde das pessoas. Diante desse cenário, não basta apenas termos ações isoladas que tentam “cobrir” os problemas. É necessária uma reflexão global acerca das consequências do modo de vida capitalista para as pessoas e para o planeta como um todo. Isso pode emanar ações diversas para tomarmos novos rumos e termos outros modos de produção da vida mais solidários e saudáveis.

Além dos aspectos macrossociais, também precisamos refletir sobre a onipresença dos estressores no cotidiano da vida microssocial [7]. Os riscos diversos e os eventos não previsíveis configuram experiências do rio da vida da nossa participante. Alguns riscos são assumidos pessoalmente (por exemplo, começar a fumar) e outros se vinculam às condições de vida (por exemplo, falta de condições para praticar atividade física). Por outro lado, o acaso também emerge em eventos que trazem grandes impactos (por exemplo, a perda de entes queridos ou a emergência de uma pandemia).

É importante notar que, diante dos estressores, nossa participante mobiliza diversos RGR. A capacidade de aprender, a resiliência, o enfrentamento e a fé se vinculam à construção e fortalecimento dos pilares do SdC (compreensibilidade, maleabilidade e significância). Vemos o destaque dado à religião/espiritualidade que contribui para que as pessoas encontrem sentido para a vida [23], bem-estar e maior resiliência [24] no processo de envelhecimento. Isso também se correlacionou com maiores níveis de significância em um grupo de sobreviventes do Holocausto [25].

Por fim, cabe destacar os RGR relacionados às conquistas e reflexões sobre a vida e a longevidade. Heufemann et al. [5] argumentam que a compreensão da inevitabilidade do processo de envelhecimento mostra um caminho de desenvolvimento, sabedoria e constituição de habilidades para viver. A postura criativa de nossa participante destaca elementos para compreendermos o “mistério da saúde”. Isso ocorre quando ela se vê surpresa de ter chegado tão longe, tendo vivido diante de diversos estressores que tensionaram a sua vida.

Logo, nos afastamos do mito que destaca a visão estereotipada e deficitária da pessoa que envelhece como um ser passivo e frágil [2, 26]. A velhice, para nossa participante, é o tempo-espaço criativo para novas conquistas, visto que ela apresenta características de resiliência e a capacidade de gerenciamento dos desafios da vida [2, 3]. Características semelhantes foram observadas por Bassit [12] nas histórias de vida de um grupo de mulheres que, apesar das adversidades da vida, apresentaram uma velhice com alegria e satisfação.

Destacamos como ponto forte da investigação o desenvolvimento de abordagens qualitativas na pesquisa salutogênica [27]. Destacamos o desafio de ampliarmos os dados com mais histórias de vida. Assim, será possível produzir novas evidências qualitativas do envelhecimento criativo. Analisando o lugar social percorrido pela participante, nosso estudo contribui para a produção teórica de novas concepções sobre a velhice.

A história de vida analisada é um exemplo possível para responder aos mistérios da longevidade. Vemos sua relevância no sentido de mudar a visão do que é a velhice, passando a ter um significado criativo. Estudar o envelhecimento orientado pela teoria da salutogênese nos faz ver que existem corpos velhos que passaram por muitos estressores, mas que criaram e mobilizaram RGR para conviver com as mudanças da vida. Neste sentido, a partir daqui, pretendemos produzir novas histórias que, analisadas sob a lente da salutogênese, nos possam dar uma maior compreensão da subjetividade do envelhecer.

Conclusão

Concluímos que estressores e RGR estão presentes no envelhecimento criativo de uma mulher de forma complexa e sempre vinculados às suas condições de vida. Ser mulher é um estressor significativo. Isso destaca a necessidade de políticas para combater o patriarcado e o machismo instalados na sociedade. Potencializar RGR significa mudar estruturas socioculturais, para que mulheres em contexto de vulnerabilidade social acessem melhores condições de vida e suporte social.

Por fim, a salutogênese nos permite mudar a compreensão sobre o envelhecimento. Não se trata de perdas e déficits. Efeitos deletérios e adoecimentos no processo de envelhecimento parecem estar mais vinculados às condições de vida adversas do que a um processo biológico natural. No entanto, mais pesquisas são necessárias para fortalecer esses indícios. Envelhecer é a potência criativa de enfrentar os estressores no trajeto da vida e gerenciar os desafios. Novos estudos que desejarem seguir uma orientação salutogênica, devem se atentar aos pontos fortes e RGR em vez de focar em riscos e déficits.

Agradecimentos

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) pelo apoio institucional.

Conflitos de Interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesses de qualquer espécie.

Fontes de financiamento

Financiamento próprio.

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa: Oliveira VJM, Streit IA. Coleta de dados: Oliveira VJM, Ferreira ABO, Seixas RS, Pereira IL. Análise e interpretação dos dados: Oliveira VJM, Streit IA, Souza CGS. Redação do manuscrito: Oliveira VJM, Streit IA. Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Oliveira VJM, Streit IA, Ferreira ABO, Seixas RS, Pereira IL, Souza CGS.

Referências

1. World Health Organization. Active ageing: a policy framework. Genebra: WHO, 2002. https://iris.who.int/handle/10665/67215

2. Koelen M, Eriksson M. Older people, sense of coherence and community. In M. B. Mittelmark et al. (Eds.), The handbook of salutogenesis (2 ed., pp. 185-199). Springer. 2022. https://doi.org/10.1007/978-3-030-79515-3_19

3. Debert GG. Reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: EDUSP, 2012.

4. Debert GG. A antropologia e o estudo dos grupos e das categorias de idade. In Barros MML. Barros (Ed.), Velhice ou Terceira Idade? Estudos antropológicos sobre a identidade, memória e política (pp. 207-222). Ed. FGV., 2009.

5. Heufemann NSC, Streit IA, Ferreira HJ, Kirk D, Oliveira VJM. Active ageing in a vulnerable context: Moa’s life story from a salutogenic perspective. Estudos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento, 29(1), e132079, 2024. https://seer.ufrgs.br/index.php/RevEnvelhecer/article/view/132079

6. Bassit AZ. Envelhecimento e gênero. In E. V. Freitas & L. Py (Eds.), Tratado de geriatria e gerontologia (3 ed., pp. 2177-2181). Gen. Guanabara Koogan. 2013.

7. Antonovsky A. The salutogenic model as a theory to guide health promotion. Health Promotion International, 11(1), 11-18. 1996. https://doi.org/10.1093/heapro/11.1.11

8. Antonovsky A. Health, stress and coping: new perspectives on mental and physical well-being. Jossey-Bass Publishers. 1979.

9. Antonovsky A. Unraveling the mystery of health: how people manage stress and stay well. Jossey-Bass Publishers. 1988.

10. Antonovsky A. The salutogenic approach to aging. A lecture held in Berkeley, 21 January 1993. Retrieved 24 Feb 2015, from http://www.angelbre.com/ok/soc/a-berkeley.html.

11. Correia PMS. O quotidiano de idosos com doença celíaca: histórias de vida perpassadas por mudanças envolvendo o lazer e a promoção da saúde. [Tesis doctoral, Federal University of Santa Catarina – UFSC]. UFSC RI. 2020. https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/220406

12. Bassit AZ. Histórias de mulheres: reflexões sobre a maturidade e a velhice. In M. C. S. Minayo & C. E. A. Coimbra Junior (Eds.), Antropologia, saúde e envelhecimento (pp. 175-189). Fiocruz. 2002.

13. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (10 ed.). Hucitec. 2007.

14. Ferreira MLM. Memória e velhice: do lugar da lembrança. In M. M. L. Barros (Ed.), Velhice ou Terceira Idade? Estudos antropológicos sobre a identidade, memória e política (pp. 49-68). Ed. FGV. 2009.

15. Sarmento MJ. Generations and alterity: questions to the sociology of childhood. Educação & Sociedade, 26(91), 361-378. 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-73302005000200003

16. Huizinga J. Homo ludens: a study of the play-element in culture. Routledge. 1998.

17. Oliveira VJM. The game as a salutogenic resource: an analysis of “Life is beautiful” movie. Cadernos do Aplicação, 36(1), 1-14. 2023. https://seer.ufrgs.br/index.php/CadernosdoAplicacao/article/view/134153

18. Silva LEL, Oliveira MLC. Violence against women: systematic review of the Brazilian scientific literature within the period from 2009 to 2013. Ciência & Saúde Coletiva, 20(11), 3523-3532. 2015. https://doi.org/10.1590/1413-812320152011.11302014

19. Bourdieu P. Masculine domination. Stanford University Press. 2002.

20. Divin C, Volker D, Champion J, Angel JL. Hope and health in aging Mexican-American women with a lived experience of intimate partner violence. Innovation in Aging, 1(suppl_1), 790. 2017. https://doi.org/10.1093/geroni/igx004.2860.

21. Costa AMMR, Moraes PF, Costa JLR, Lopes RGC. Envelhecimento e trabalho. In J. L. R. Costa, A. M. M. R. Costa, & G. Fuzaro Junior (Eds.), O que vamos fazer depois do trabalho? Reflexões sobre a preparação para aposentadoria (pp. 23-32). Cultura Acadêmica. 2016.

22. Barata RB. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Fiocruz. 2009.

23. Biolchi CS, Portella MR, Colussi EL. Life and old age at 100 years of age: perceptions on elderly speech. Estudos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento, 19(2), 583-598. 2014. https://doi.org/10.22456/2316-2171.37220

24. Margaça C, Rodrigues D. Spirituality and resilience in adulthood and old age: a revision. Fractal: Revista de Psicologia, 31(2), 150-157. 2019. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i2/5690

25. Cassel L, Suedfeld P. Salutogenesis and autobiographical disclosure among Holocaust survivors. The Journal of Positive Psychology, 1(4), 212-225. 2006. https://doi.org/10.1080/17439760600952919

26. Lara LR, Finato MSS, Zalula R, Morete VS. Estratégias de coping utilizadas por uma idosa: um estudo de caso. Estudos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento, 8(1), 83-97. 2005. https://doi.org/10.22456/2316-2171.4776

27. Eriksson M, Lindström, B. Validity of Antonovsky’s sense of coherence scale: a systematic review. Journal of Epidemiology & Community Health, 59(6), 460-466. 2005. https://doi.org/10.1136/jech.2003.018085