EDITORIAL
O papel da enfermagem nos 35 anos do Sistema Único de Saúde (SUS)
Luís Paulo Souza e Souza1, Túlio Almeida Dias2, Carla Silvana de Oliveira e Silva3
1Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Manaus, AM, Brasil
2Universidade Anhembi Morumbi (UAM), São Paulo, SP, Brasil
3Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), Montes Claros, MG, Brasil
Recebido em: 2 de Novembro de 2025; Aceito em: 8 de Novembro de 2025.
Correspondência: Luís Paulo Souza e Souza, luis.pauloss12@gmail.com
Como citar
Souza LPS, Dias TA, Silva CSO. O papel da enfermagem nos 35 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Enferm Bras. 2025;24(5):2766-2769. doi:10.62827/eb.v24i5.4100
Ao celebrar 35 anos de existência, o Sistema Único de Saúde (SUS) reafirma-se como um dos maiores marcos civilizatórios da história do Brasil. Nascido no contexto dos ideais da Reforma Sanitária, o SUS concretizou o princípio de que a saúde é direito de todos e dever do Estado — um avanço inédito em um país historicamente marcado pela exclusão social e pelas desigualdades regionais.
Nesse percurso, a enfermagem tem sido mais do que uma categoria profissional: é a força vital que sustenta o cotidiano do sistema. Estima-se que cerca de 60% da força de trabalho da saúde brasileira seja composta por profissionais de enfermagem — enfermeiros(as), técnicos(as) e auxiliares — presentes em todos os níveis de atenção, da prevenção primária às unidades de alta complexidade [1].
Mais do que uma presença quantitativa, a enfermagem representa uma dimensão ética, política e pedagógica do SUS. Sua atuação traduz, no encontro direto com a população, os princípios de universalidade, integralidade e equidade, tornando o cuidado um ato político. Assim, compreender o papel da enfermagem nos 35 anos do SUS é compreender a própria construção da saúde pública brasileira como projeto coletivo e emancipador.
A enfermagem foi parte ativa do movimento sanitarista, que emergiu na década de 1970 articulando intelectuais, profissionais e movimentos sociais na luta por uma saúde democrática. Durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), enfermeiros e pesquisadores participaram da formulação dos princípios que dariam origem ao SUS, defendendo um modelo de atenção centrado na promoção da vida, na justiça social e na equidade [2].
Nas décadas de 1990 e 2000, a categoria consolidou seu protagonismo na expansão da Atenção Primária à Saúde e na implantação da Estratégia Saúde da Família, que se tornou a principal via de acesso da população ao sistema [3]. O enfermeiro assumiu funções de coordenação de equipe, supervisão de agentes comunitários, educação em saúde e gestão local, tornando-se mediador entre o Estado e a comunidade [3].
Essas transformações expressaram uma mudança paradigmática importante: o enfermeiro deixou de ser apenas executor de ordens médicas e passou a ser sujeito político da prática em saúde, com autonomia técnica e responsabilidade social. O cuidado, nesse contexto, passou a ser também um ato de resistência e construção de cidadania.
O cuidado constitui o eixo que dá sentido à enfermagem e, por extensão, ao próprio SUS. O conceito de cuidado ampliado, discutido por Ayres [4], propõe uma prática que integra ciência, ética e sensibilidade. O enfermeiro é mediador entre a técnica e a vida, entre o saber biomédico e as necessidades humanas concretas.
A Política Nacional de Humanização, implementada em 2003, reforçou esse papel ao reconhecer o cuidado como relação entre sujeitos e não apenas como prestação de serviços. A enfermagem se tornou a principal tradutora desse princípio na prática cotidiana — é quem acolhe, escuta e acompanha o sofrimento físico, emocional e social dos usuários [5].
Durante a pandemia de Covid-19, essa dimensão se tornou ainda mais evidente. Enfermeiros estiveram na linha de frente do enfrentamento, responsáveis pela triagem, vacinação, manejo clínico e apoio emocional a pacientes e famílias. No entanto, também foram as maiores vítimas do esgotamento físico e psíquico, da precarização e da invisibilidade social [6].
A crise sanitária evidenciou um paradoxo: o país depende profundamente da enfermagem, mas ainda não reconhece plenamente sua centralidade. A aprovação do piso salarial nacional da enfermagem (Lei nº 14.434/2022) [7] foi uma conquista histórica, mas a valorização da categoria requer políticas estruturais de formação, carreira, condições dignas de trabalho e promoção da saúde mental.
O SUS contemporâneo enfrenta desafios complexos: subfinanciamento, desigualdades regionais, avanço da privatização e precarização das relações laborais. A enfermagem está no epicentro dessas contradições. O subfinanciamento crônico, agravado por políticas de austeridade e pelo teto de gastos (EC 95/2016), impacta diretamente a qualidade do cuidado e as condições de trabalho. Muitos profissionais atuam em vínculos temporários, com múltiplos empregos e jornadas exaustivas, o que compromete o bem-estar e a segurança do paciente.
Além disso, a transição digital e a incorporação de novas tecnologias — como o teleatendimento, o prontuário eletrônico e a inteligência artificial — têm transformado o modo de cuidar. Embora ampliem o acesso, essas ferramentas trazem o risco da despersonalização do cuidado. O desafio ético para a enfermagem é utilizá-las sem perder o vínculo humano que constitui sua identidade profissional.
A dimensão de gênero e raça também é central. Composta majoritariamente por mulheres e com expressiva presença de profissionais negras, a enfermagem reflete as desigualdades históricas da sociedade brasileira. A luta por equidade racial e de gênero na saúde é, portanto, parte indissociável da luta pela democratização do SUS [8].
Nas últimas décadas, houve expansão significativa dos cursos de graduação e pós-graduação em enfermagem, o que contribuiu para a produção científica e o reconhecimento internacional da área. Segundo a Fundação Oswaldo Cruz [9], o Brasil é hoje um dos países com maior número de pesquisadores e publicações em enfermagem na América Latina.
Entretanto, ainda é necessário fortalecer a integração entre ensino, serviço e comunidade. A formação deve preparar profissionais com autonomia intelectual, sensibilidade ética e competência política, capazes de compreender a saúde como campo de disputa social.
Do ponto de vista político, a enfermagem tem ampliado sua participação em movimentos sociais e conselhos de saúde, reivindicando políticas de valorização e condições dignas de trabalho. A Carta da Enfermagem Brasileira pelo SUS [10] reafirma o compromisso da categoria com a defesa do sistema público e com a equidade em saúde.
Um dos legados mais significativos do SUS é o princípio da territorialização — a organização das ações de saúde a partir das realidades locais, reconhecendo determinantes sociais, culturais e ambientais. A enfermagem é a categoria com maior inserção territorial do sistema. Nas unidades básicas de saúde, os enfermeiros conhecem as famílias, acompanham suas trajetórias e constroem vínculos duradouros. Essa proximidade possibilita um cuidado enraizado, que integra prevenção, promoção e acompanhamento contínuo.
Ao mesmo tempo, a atuação territorial exige participação social. O enfermeiro é, frequentemente, o elo entre o serviço e o conselho local de saúde, articulando as demandas comunitárias com as políticas públicas. Essa participação constitui um exercício concreto de democracia sanitária — expressão prática do princípio constitucional de que o SUS deve ser construído com a sociedade.
O trabalho em saúde é sempre “trabalho vivo em ato”: cada encontro é criação, produção de subjetividade e cuidado. A enfermagem, ao exercer esse trabalho vivo, torna o SUS um espaço de invenção cotidiana, em que o humano se reconstrói em meio às adversidades.
O papel da enfermagem nos 35 anos do SUS transcende a dimensão técnica: trata-se de um projeto ético-político de emancipação. A enfermagem do SUS é exemplo vivo dessa epistemologia, construindo conhecimento a partir da prática, da escuta e do diálogo com os territórios.
Essa perspectiva se articula com a ciência participativa, que defende a produção de saber comprometida com a transformação social. Cada ação de enfermagem — uma visita domiciliar, uma escuta em grupo, uma ação educativa — é um ato de pesquisa e intervenção na realidade.
Portanto, a enfermagem brasileira encarna uma práxis libertadora, que une teoria, cuidado e política. Sua força emancipatória reside justamente na combinação entre sensibilidade e consciência crítica — entre o gesto e a utopia.
Os 35 anos do SUS são também 35 anos de resistência da enfermagem brasileira. Desde a Reforma Sanitária até as lutas recentes pelo piso salarial, os profissionais de enfermagem têm sido a espinha dorsal do sistema, sustentando o cuidado e a esperança em contextos adversos.
O futuro do SUS depende do fortalecimento dessa categoria — por meio da valorização profissional, da garantia de condições dignas de trabalho e da ampliação da participação política. Mas, acima de tudo, depende da preservação de um valor essencial: o cuidado como expressão máxima de humanidade e solidariedade.
Assim, cada gesto de cuidado realizado pela enfermagem é também um ato de esperança — um gesto que mantém vivo o sonho de uma sociedade mais justa, saudável e solidária. Nos próximos 35 anos, o desafio será continuar fazendo do SUS não apenas um sistema de saúde, mas um projeto de país, sustentado por profissionais que compreendem o cuidado como ato de emancipação. E, nesse projeto, a enfermagem continuará sendo sua alma sensível, técnica e revolucionária.
Referências
1. Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Perfil da Enfermagem no Brasil. Brasília: Cofen; 2017.
2. Paim JS. A Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador: EDUFBA; 2008.
3. Starfield B. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco; 2002.
4. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS/UERJ; 2004.
5. Ministério da Saúde (BR). Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Brasília: MS; 2003.
6. Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Enfermagem em tempos de pandemia: desafios e aprendizados. Brasília: Cofen; 2021.
7. Brasil. Lei nº 14.434, de 4 de agosto de 2022. Institui o piso salarial nacional da Enfermagem. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 ago 2022.
8. Batista KBC, Schraiber LB. Gênero e trabalho na Enfermagem brasileira. Rev Bras Enferm. 2013;66(5):785–93.
9. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Pesquisa em Enfermagem no Brasil: panorama e desafios. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020.
10. Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Carta da Enfermagem Brasileira pelo SUS. Brasília: Cofen; 2023.