Educ e Inc. 2025;13(1):121-142
doi: 10.62827/ei.v13i1.1004

ARTIGO ORIGINAL

Formação docente para o antirracismo nos Núcleos de Estudos das Relações Étnico-Raciais

Teacher training for anti-racism in the Centers of Studdy on Ethnic-Racial relations

Andréa Cristina Ulisses de Jesus1, Maria Lúcia Castanheira1, Elizabeth Guzzo de Almeida1

1Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil

Recebido em: 9 de fevereiro de 2025; Aceito em: 28 de fevereiro de 2025.

Correspondência: Andréa Cristina Ulisses de Jesus, andreaulisses@gmail.com

Como citar

Jesus ACU, Castanheira ML, Almeida EG. Formação docente para o antirracismo nos núcleos de estudos das relações étnico-raciais. Educ e Inc. 2025;13(1):121-142. doi:10.62827//ei.v13i1.1004

Resumo

Introdução: Este artigo analisa uma experiência de implementação de uma política de formação continuada e em serviço instituída pelos Núcleos de Estudos das Relações Étnico-Raciais – NERER, criados na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, visando promover uma educação antirracista. Os NERER realizam processos formativos dos profissionais da educação, com a finalidade de implementar as leis 10.639/2003 e 11.645/2008 nas escolas municipais. Objetivo: Analisar como a temática étnico-racial tem sido abordada em discussões e orientações realizadas na formação continuada de docentes para a construção de práticas pedagógicas antirracistas. Métodos: Análise de eventos interacionais, isto é, situações cotidianas nas quais as pessoas se envolvem, identificadas por meio da construção de uma linha de tempo geral das atividades realizadas. Resultados: Os NERER como política de formação continuada e em serviço orienta-se por princípios e diretrizes, tais como, a formação entre pares, a valorização das práticas que emergem do próprio contexto educacional, a formação como um direito e a escola como espaço de produção de conhecimento. Esses preceitos têm assegurado a continuidade da política e sua capilaridade em toda a rede municipal de educação. Conclusão: Os resultados que vem sendo alcançados pelos NERER, de reformulação das práticas pedagógicas, estão relacionados ao modo como organizam e desenvolvem as ações de formação, pautando-se na periodicidade, na formação entre pares e na seleção de temas articulados às demandas dos contextos de ensino.

Palavras-chave: Formação profissional; Antirracismo; Política Pública.

Abstract

Introduction: This article analyzes an experience of implementing a continuing and in-service training policy established by the Centers for the Study of Ethnic-Racial Relations – NERER, created in the Belo Horizonte Municipal Education Network, aiming to promote anti-racist education. NERER carries out training processes for education professionals, with the purpose of implementing laws 10,639/2003 and 11,645/2008 in municipal schools. Objective: To analyze how ethnic-racial issues have been addressed in discussions and guidance carried out in the continuing training of teachers for the construction of anti-racist pedagogical practices. Methods: Analysis of interactional events, that is, everyday situations in which people get involved, identified through the construction of a general timeline of the activities carried out. Results: NERER as a continuing and in-service training policy is guided by principles and guidelines, such as peer-to-peer training, the valorization of practices that emerge from the educational context itself, and training as a right and the school as a space for knowledge production. These precepts have ensured the continuity of the policy and its reach throughout the municipal education network. Conclusion: The results that have been achieved by NERER, in reformulating pedagogical practices, are related to the way they organize and develop training actions, based on periodicity, peer-to-peer training and the selection of themes linked to the demands of teaching contexts.

Keywords: Professional Training; Antiracism; Public Policy.

Introdução

A constatação do racismo como estrutural e sistêmico na sociedade brasileira deu início no país, a partir dos anos 2000, à implementação de políticas de ações afirmativas voltadas para a população negra, com a finalidade de se diminuir o fosso das desigualdades raciais. Essas políticas, pensadas para todas as esferas sociais, corresponderam a um conjunto de ações articuladas que foram propostas pelo Estado, visando reduzir os efeitos deletérios do racismo.

Na esfera educacional, um problema central enfrentado pelas instituições de ensino é o predomínio de um currículo monocultural, construído a partir de uma matriz epistemológica eurocentrada, o que torna esses currículos pouco representativos do ponto de vista da pluralidade étnico-racial existente. Infelizmente, os sistemas de ensino criados para atender às elites dominantes e perpetuar a manutenção de privilégios, permaneceram como um dos principais mecanismos de reprodução do racismo, reforçando na sociedade uma visão estereotipada e subalternizante das populações afrodiaspóricas e indígenas. Essa visão, ainda preponderante nas práticas escolares, se fundamenta em uma mentalidade colonizadora e no estabelecimento de hierarquias raciais [1].

Nos últimos anos, vimos acompanhando o recrudescimento das tensões raciais no país, e que vem sendo amplamente noticiado pelos veículos de comunicação. Nas escolas, observamos a recorrência de casos de racismo contra estudantes negros nas diferentes etapas da educação básica e no ensino superior. As denúncias envolvem desde a ofensa à injúria racial, culminando por vezes em violência física, ou mais tragicamente, como ocorreu no ano de 2024, um caso de suicídio de um adolescente negro que não suportou o racismo que vinha sofrendo na escola. Esses dados seguem compondo as estatísticas de pessoas vitimadas pelo racismo.

Frente a esses acontecimentos cada vez mais frequentes no ambiente escolar, constatava-se ao mesmo tempo, uma inércia e uma ausência de ações efetivas dos sistemas de ensino diante dessas opressões estruturais que eclodem no interior das escolas. Visando intervir nesse contexto, a promulgação da Lei 10.639 de 2003 [2], modificada pela Lei 11.645 de 2008 [3] significou uma intervenção direta do Estado nas instituições de ensino, configurando-se, como uma das principais políticas de ações afirmativas na educação. As leis, ao instituírem a obrigatoriedade do ensino de história e culturas africanas, afro-brasileira e indígenas nas redes pública e privada de ensino, representaram uma resposta político-jurídica de grande impacto para as práticas pedagógicas e para o campo da formação de professores.

Este artigo se insere em discussões sobre essa problemática ao focalizar a formação continuada de professores tendo em vista os processos de transformações, mudanças e tensões ocasionadas pela implantação das diretrizes das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008. Assim, examinaremos uma política pública de formação continuada voltada para a efetivação de uma educação antirracista instituída na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte (RME-BH), por meio dos Núcleos de Estudos das Relações Étnico-Raciais (NERER), com o objetivo de analisar como a temática étnico-racial tem sido abordada nas discussões e orientações voltadas para a formação docente.

Com esse intuito, apresentaremos os processos formativos conduzidos pelos NERER, a partir da análise de eventos interacionais [4, 5, 6] identificados no percurso de desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa e de abordagem etnográfica sobre práticas de letramento, formação de professores e antirracismo. Na análise aqui realizada, buscaremos responder as seguintes questões: a) como os NERER desenvolvem a formação de professores para a promoção de uma educação antirracista? b) De que modo essas formações são realizadas? c) Quais temas e propostas de ensino subsidiam esses processos formativos e com quais resultados? Ao buscar respostas para esses questionamentos visamos construir uma compreensão sobre as diretrizes que orientam os atuais modelos de formação continuada que orientam a implementação de um projeto educacional antirracista. Nesse processo, enfatizamos a relevância de se estabelecer novos paradigmas para o campo da formação docente, em que a formação para a diversidade étnico-racial se coloque como um dos fundamentos para se reorientar as práticas educativas.

Métodos

Para atender ao objetivo geral, isto é, analisar como a temática étnico-racial tem sido abordada nas discussões e orientações voltadas para a formação docente, fez-se necessário construir uma visão das práticas culturais realizadas pelos integrantes dos NERER. Para esse fim, adotamos os princípios da pesquisa qualitativa e a perspectiva etnográfica [4] o que possibilitou a imersão em campo, o registro descritivo das ações, a observação participante e o estabelecimento de uma perspectiva êmica para a geração de dados. A partir desses princípios estabelecemos uma abordagem mais focada dos aspectos sociais e culturais que caracterizam os diferentes grupos sociais.

Como procedimento analítico, examinamos eventos interacionais [5, 6, 7]. Um evento interacional diz respeito às situações de interações que propiciam visualizar o que as pessoas fazem, como reagem umas às outras ao realizarem tarefas cotidianas. Esses eventos podem constituir-se de partes menores, denominadas de subeventos. A análise de um subevento permite identificar mais detalhadamente os principais elementos que o constituem, tais como, participantes, forma de estruturação, papéis desempenhados e temas.

A seleção dos eventos interacionais analisados para este artigo foi operacionalizada pela identificação de rich points [8], isto é, situações de estranhamento definidas pelo pesquisador em relação à cultura observada. Os rich points emergem a partir de diferenciações de sentido a respeito de ações, comportamentos e atividades que são familiares para os integrantes de um grupo, porém incompreensíveis para um participante externo. Logo, eles se constituem como pontos de relevância que sinalizam formas de se entrar em uma dada cultura e de acessar o conhecimento cultural de seus participantes.

Por meio de rich points, identificamos os eventos interacionais reunião de planejamento, formação docente, grupos de WhatsApp, composição do kit de literatura infantil afro-brasileira e estabelecimento de parceria que se constituíram como eventos chave, ou seja, como unidades de análise que permitem demonstrar a relação parte-todo da pesquisa. Uma das formas de se visualizar eventos interacionais seria por meio da construção de uma linha de tempo geral das atividades (Figura 1). Esse processo se torna possível quando realizamos uma análise retrospectiva das ações observadas ao longo de um período.

O evento interacional aqui focalizado como unidade de análise corresponde ao encontro formativo realizado no mês de abril de 2022 (encontro inter-regional). As informações relativas a esse evento integram o banco de dados da pesquisa de natureza etnográfica conduzida entre os períodos de 2021 e 2023. A adoção de uma abordagem etnográfica possibilitou no estudo desenvolvido examinar as práticas culturais, bem como acessar os significados que essas adquiriam para os participantes dos NERER.

Em obediência aos preceitos da Resolução CNS Nº 466, de 12 de dezembro de 2012, que rege as pesquisas com seres humanos, o estudo foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, via submissão do projeto a Plataforma Brasil, sendo aprovado com número de CAAE 58254222.7.0000.5149 e número de parecer 5.473.166.

Resultados

Os NERER como política de formação continuada e em serviço

Os Núcleos de Estudos das Relações Étnico-Raciais, daqui em diante NERER, foram institucionalizados na RME-BH em 2005, e, desde então, atuam nos processos formativos dos profissionais da educação, estabelecendo-se como um espaço de interlocução, de estudos e de desenvolvimento de práticas pedagógicas antirracistas. A atuação política de seus integrantes viabilizou a configuração de uma política de formação continuada e em serviço na rede municipal de educação, voltada exclusivamente para o trabalho com a diversidade étnico-racial.

Os NERER foram criados a partir dos desdobramentos das ações institucionais previstas na Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), criada por meio do Decreto nº. 4.486/2003 [9]. A PNPIR estabeleceu as metas voltadas para os processos educacionais visando o desenvolvimento de atividades de estudo sobre às contribuições histórico-culturais dos negros e indígenas, a elaboração e circulação de material bibliográfico e didático sobre diversidade étnico-racial e a ênfase na formação docente.

Com base nessas determinações, os NERER estabeleceram diretrizes e princípios que não só orientam os processos formativos, como também tornaram exequíveis o cumprimento das metas estipuladas na PNPIR, possibilitando assim que os núcleos de estudos se estabelecessem como uma política da rede municipal de educação voltada para o trabalho com a diversidade étnico-racial. Em relação às diretrizes destacam-se a formação entre pares e a valorização das práticas que emergem nos próprios contextos de ensino dos professores.

A gestão dos NERER é realizada por uma coordenação ampliada, cujos integrantes estão à frente dos processos formativos. A equipe gestora é composta por professores que formam outros professores, e a seleção da equipe se baseia em critérios como desenvolvimento de pesquisas sobre relações étnico-raciais, saberes notórios construídos na atuação nos movimentos sociais negros e indígenas ou desenvolvimento de práticas de ensino exitosas sobre diversidade nas salas de aula.

Além dessas diretrizes, os NERER adotam como princípios orientadores a formação em serviço como um direito e a escola como espaço de produção de conhecimento. Esse alinhamento tem assegurado a capilaridade da política em toda a rede municipal de educação. Desde então, os NERER estão presentes nas nove regionais administrativas da cidade de Belo Horizonte (regional Barreiro, regional Nordeste, regional Oeste, regional Pampulha, regional Noroeste, regional Norte, regional Centro-Sul, regional Leste, regional Venda Nova) para atender às 569 instituições vinculadas à Secretaria Municipal de Educação, entre elas, 323 escolas da rede própria (escolas de educação infantil e de ensino fundamental) e 246 instituições da rede conveniada (creches) [].

A formação para a diversidade étnico-racial nos NERER

Os encontros formativos realizados pelos NERER acontecem mensalmente, essa periodicidade demarca um espaço de formação conquistado pelos professores da rede a partir de reivindicações por valorização profissional e políticas de formação nas últimas décadas. A periodicidade das formações também fortalece a continuidade da política de formação continuada, mesmo em face aos processos de descontinuidades gerados por mudanças na gestão pública.

Sendo a rede muito extensa, contando com 569 instituições de ensino, distribuídas nas 09 regionais administrativas do município [
], uma saída para atender às instituições de ensino foi o estabelecimento da representação. Cada uma das escolas e creches elegem representantes entre os profissionais dos diferentes segmentos da educação, que assumem o compromisso de compartilhar aprendizagens e fomentar novas práticas de ensino.

A cada mês alternam-se diferentes encontros formativos, denominados de encontros regionais, encontros inter-regionais e encontros centralizados, conforme ilustrado na Figura 1, na linha de tempo geral das atividades dos NERER. Os encontros regionais ocorrem em cada uma das nove regionais e atendem às demandas locais a respeito do trabalho sobre relações étnico-raciais. Nos encontros inter-regionais se reúnem escolas de três regionais distintas, visando promover a interação e a troca de saberes. E por fim, nos encontros centralizados se reúnem todas as regionais administrativas. Geralmente, eles se realizam em formato de seminários e encerram um ciclo de formações, propiciando o debate em torno de uma temática que perpassou as discussões realizadas ao longo do ano.

Na Figura 1, mais adiante, representamos os principais eventos realizados no primeiro semestre letivo de 2022, nos meses de fevereiro a junho. Esse período foi bastante desafiador para os NERER devido a Pandemia da Covid-19. A nova condição criada pela pandemia demandou das instituições a interrupção das atividades escolares presenciais e o estabelecimento de outras formas de interação para o desenvolvimento das atividades, sendo as mais utilizadas as plataformas de videoconferências e as redes sociais. Esse novo formato de interação ficou conhecido como atividades online, atividades remotas ou atividades síncronas. Devido a esse contexto, a representação dos eventos dos NERER na Figura 1 demonstra para o período ilustrado, que a maior parte dos eventos interacionais foram realizados no formato online. Os eventos interacionais listados, sendo eles, reunião de planejamento, formação docente, grupos de whatsapp, composição do kit de literatura infantil afro-brasileira e estabelecimento de parcerias, constituíram nos diferentes meses ciclos de atividades e que corresponderam ao todo da pesquisa etnográfica.

A linha de tempo geral dos eventos interacionais dos NERER visa situar o recorte temporal analisado e as ações realizadas mês a mês. Ao longo da análise, demonstraremos a finalidade e o formato utilizado para os eventos mais recorrentes, sendo eles, a reunião de planejamento e a formação docente. Esses eventos evidenciaram os princípios culturais que orientavam o trabalho realizado. Assim, examinaremos quem participava desses eventos, os espaços onde ocorriam e a estrutura de participação construída. A partir dessa descrição, buscaremos responder como os NERERs desenvolvem a formação dos professores para a promoção de uma educação antirracista.

Figura 1 – Linha de tempo geral dos eventos interacionais realizados nos NERERs

Fonte: Banco de dados da pesquisa etnográfica, 2021 a 2023

No evento interacional reunião de planejamento definia-se as ações relativas à formação docente, à aquisição de material didático e bibliográfico e ao estabelecimento de parcerias com núcleos de pesquisas das universidades, espaços museológicos, movimentos artístico-culturais, entre outros, para propiciar o acesso as diferentes fontes de conhecimento e possibilitar vivências artístico-culturais. Dele participavam apenas os integrantes da coordenação ampliada que definiam coletivamente pautas, demandas, sugestões e encaminhamentos.

O evento interacional formação docente concretizava as principais ações formativas dos núcleos. Visando preparar os profissionais da educação para as complexidades envolvendo as transformações necessárias para uma perspectiva de ensino intercultural e antirracista, os NERER buscavam contribuir: para a reformulação dos currículos escolares, propiciar o estudo de teorias e conceitos do campo das relações étnico-raciais, divulgar a legislação que regulamenta a educação para as relações étnico-raciais, conhecer, analisar e divulgar livros literários infantis que tratam da história e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas, analisar materiais didáticos e bibliográficos e sua adequação a uma perspectiva de ensino intercultural crítica [10], fomentar a elaboração de planos de aula e sequências didáticas tendo como enfoque a diversidade étnico-racial, divulgar práticas exitosas sobre a temática étnico-racial visando inspirar novas práticas, propiciar vivências artístico-culturais características do mundo negro e indígena etc.

Ao trazer esse detalhamento dos eventos interacionalmente construídos pelos participantes dos NERER que atuavam em funções diversas nas escolas (coordenação pedagógica, docência, gestão escolar e auxiliares de biblioteca), foi possível propiciar um olhar sobre como os NERERs desenvolvem a formação dos profissionais da educação e buscam efetivar uma proposta de educação antirracista na rede municipal de educação. Para consolidação da proposta, os processos formativos desempenham um papel fundamental de mudança de uma visão de ensino homogeneizadora e universalizante, para se estabelecer o pluralismo cultural como potencialidade e desconstruir a colonialidade no campo do saber.

Uma vez examinado como os diversos participantes dos NERERs se organizam tendo em vista a formação docente para o trabalho com a diversidade étnico-racial, buscaremos agora realizar um levantamento dos temas trabalhados nos encontros formativos e construir uma compreensão sobre o que conta como temas relevantes para uma educação antirracista.

Discussão

As temáticas que subsidiam a formação para uma educação antirracista

A análise da linha de tempo geral dos eventos realizados nos NERER (Figura 1), evidenciou a realização de três encontros formativos no primeiro semestre de 2022, esses ocorreram nos meses de abril, maio e junho. Buscando acessar as ações realizadas pelos diversos participantes durante os encontros formativos, retomamos as anotações do diário de campo e as gravações realizadas, para reconstituir no curso dessas ações o que era discutido, quem propunha os temas discutidos e visando quais resultados.

Para propiciar uma visão de como os participantes dos encontros formativos conduziam as interações em torno de temas, apresentamos na Tabela 1 uma representação do evento “Encontro formativo abr./2022”. Considerando o limite de páginas deste texto focalizaremos apenas esse evento, o que nos permitirá demonstrar a construção situada e local do processo interacional. A tabela está organizada em três colunas, na primeira coluna da esquerda para a direita, realizamos uma descrição do evento e o modo como ele estava organizado. Na segunda coluna, listamos os temas abordados pelos participantes ao longo do evento e na última coluna, descrevemos para cada um dos temas tratados os objetivos a serem alcançados.

Tabela 1 - Representação do evento interacional encontro formativo abr./2022

Encontro Formativo abr./2022

Descrição do evento

Temas abordados

Objetivos

Data de realização: 20/04

Caracterização: Encontro inter-regional

Formato: virtual

Participantes: coordenação ampliada, representantes das escolas das regionais centro-sul e oeste.

1. Pandemia

1. Explicar sobre o retorno das formações no formato virtual, falar das alegrias, tensões e dificuldades do retorno às aulas.

2. Diferença entre os termos empatia e simpatia

2. Exibir um vídeo sobre o que é empatia e simpatia, relacionar os significados com as relações humanas dentro da escola.

3. História dos NERERs

3. Apresentar um histórico da criação e ações dos núcleos de estudos.

4. História da Abayomi

4. Explicar o significado do nome Abayomi, introduzir a dinâmica de apresentação (as pessoas se apresentam e falam das expectativas em relação aos núcleos e o que entendem por educação antirracista).

5. O perigo de uma história única

5. Mostrar os riscos de um currículo eurocentrado, demonstrar a relevância do trabalho com a diversidade étnico-racial, estabelecer relações entre a temática “O perigo de uma história única” com o papel dos NERERs.

6. Livro infantil “Amoras”

6. Apresentar o enredo da obra literária infantil, refletir sobre representatividade negra.

7. Política municipal de promoção da igualdade racial

7. Apresentar leis e normativas e demonstrar que a legislação tem de ser pauta de discussão nas escolas.

Fonte: Banco de dados da pesquisa etnográfica, 2021 a 2023.

Os temas listados na Tabela 1 foram identificados por pistas de contextualização [11] sinalizadas pelos participantes no fluxo da conversação. Esses temas poderiam ser compreendidos a partir de diferentes perspectivas, inicialmente analisaremos os temas voltadas para a mobilização de conhecimentos chave para se compreender o campo das relações étnico-raciais, considerando seus aspectos teórico-conceituais. Nesse grupo estariam os temas que abordaram contextos históricos e culturais, tal como o item 4, da segunda e terceira colunas da tabela, que se refere a história da Abayomi e ao estudo da etimologia de nomes na cultura Iorubá. Também se inclui nesse grupo o item 5, da segunda e terceira colunas da tabela, que trata da discussão sobre “O perigo de uma história única” [12], um texto que problematiza sobre o projeto colonial europeu, a imposição de uma visão única de mundo e os processos de desumanização e inferiorização imputados aos povos africanos. Para esse grupo, ainda estaria o item 6, da segunda e terceira colunas da tabela, que corresponde ao livro infantil “Amoras” do escritor, compositor e intérprete Emicida. O enredo propõe uma reflexão sobre a importância de uma representação positiva da identidade e da cultura negra em contraposição à imposição do silenciamento e apagamento a seu respeito.

Uma segunda perspectiva seria os temas que tratam das pautas reivindicatórias dos movimentos sociais negros e da efetivação das políticas públicas de recorte racial. Nesse grupo estaria a história dos NERERs e a política de formação para o trabalho com a diversidade étnico-racial, apresentados nos itens 3 e 7 da segunda e terceira colunas da tabela. Os núcleos representam a concretização das lutas e da militância negra por uma escola culturalmente diversa, bem como a consolidação das diretrizes da Lei 10.639/2003. Outro tema que se vincula a essa perspectiva é o trabalho com as leis, resoluções e pareceres que orientam a implementação da política de promoção da igualdade racial. A análise desses documentos visava conscientizar sobre o direito dos estudantes de ter acesso a esse debate e o dever da escola em promovê-lo.

Por fim, uma terceira perspectiva seria os temas que dialogam com a realidade social em intersecção com a pauta racial, como foi o caso do debate sobre a pandemia e a discussão sobre os significados de empatia e simpatia, itens 1 e 2 da segunda e terceira colunas da tabela. A discussão sobre a pandemia remeteu as desigualdades de classe e raça, e o modo como a população negra é sempre mais impactada quando se estabelece um recorte racial. Do mesmo modo, ao se trazer a definição dos significados de empatia e simpatia para se refletir sobre relações humanas, sobre conscientizar sobre outras realidades, esses aspectos foram articulados com o debate sobre práticas racistas e ser antirracista.

A identificação das temáticas mobilizadas na formação serve de apoio para compreendermos a perspectiva dos participantes do grupo. Ao elegerem tais temáticas, indicam a relevância atribuída e o que conta como tema relevante para se promover uma educação antirracista na perspectiva do grupo. Passaremos agora a analisar um exemplo de como esses temas estavam organizados e se articulavam para oportunizar aprendizagens sobre a temática étnico-racial.

A mobilização dos significados de empatia e simpatia em diálogo com a pauta racial: compreensões a partir da análise de um evento interacional

Para realizar uma análise, conforme Green, Dixon e Zaharlic [13, p. 53], da “vida inscrita nas palavras e nas ações dos membros do grupo [...]”, buscaremos demonstrar como a construção de um mapa para o evento interacional “Encontro formativo abr./2022” nos permitiu examinar os modos de articulação de temas em um dia de formação, na sua relação com a demanda dos NERERs de implementarem uma educação antirracista na RME-BH. O mapa do evento interacional apresentado na Tabela 2, mais adiante, representa uma visão do primeiro encontro formativo realizado em um contexto bastante peculiar, que foi o retorno das atividades após o relaxamento do isolamento social imposto pela pandemia.

A tabela foi organizada em 06 colunas. A primeira coluna, da esquerda para a direita, identifica o evento principal, encontro inter-regional abr./2022. A segunda coluna indica o horário de início e de finalização de cada ação realizada pelos participantes ao longo do evento. Ao examinar como o tempo foi gasto, observa-se que essa duração é definida pela natureza da própria atividade. O investimento maior de tempo foi dedicado para o momento “bastão de fala”, ação que propiciou aos participantes construírem discursivamente expectativas e demandas de aprendizado sobre as formações realizadas pelos NERER e a se posicionarem quanto a perspectiva de uma proposta de educação antirracista para a rede de ensino.

A terceira coluna identifica os temas tratados momento a momento no decorrer da interação. A variação dos temas demonstra que um evento se constitui de diferentes fases que se interligam tematicamente, cumprindo assim funções diversas, tais como desenvolver o aprendizado de conceitos teóricos do campo das relações étnico-raciais, propiciar o contato e a apropriação da legislação que rege os aspectos relacionados a promoção da igualdade racial na educação, articular temas sociais a partir de um recorte racial, dentre outros.

Esse aspecto é reforçado pelas ações descritas na quarta coluna e que evidencia as atividades que foram desenvolvidas com a finalidade de oportunizar aprendizados sobre a temática étnico-racial. Além disso, constata-se com base na quinta coluna que cada ação realizada configurava um espaço interacional, sendo mais constante a interação entre coordenação-professores participantes, o que pode estar relacionado ao formato virtual do encontro. Trata-se de uma forma de interação que estabeleceu outros parâmetros de sinalização de tomada de turnos de fala, como por exemplo, o uso de ícones representando uma mão erguida ou um microfone.

Por fim, na quinta coluna são identificados os materiais de apoio e que subsidiaram a discussão dos temas propostos. Esses materiais foram mobilizados especificamente nos momentos de introdução de conceitos ou de aspectos histórico-culturais envolvendo a temática diversidade étnico-racial, como também na discussão de termos e apresentação de aspectos da política de promoção da igualdade racial.

Tabela 2 – Mapa do evento interacional encontro inter-regional abr./2022

Evento
principal

Hora

Temas

Ações realizadas

Espaço
interacional

Materiais de apoio

ENCONTRO INTERREGIONAL

8h

Boas vindas

Recepção dos participantes.

C – P

-

8h10

Apresentação

Apresentação dos membros da coordenação ampliada.

C – P

-

8h20

Empatia

Contextualização do tema do vídeo.

Exibição do vídeo de animação “Empatia.”

Construção dos significados de empatia e simpatia.

Reflexões sobre o vídeo Empatia.

C – P

G – P

Vídeo de animação intitulado “Empatia”. Divulgado no canal “Janela da Alma Psicanálise” que propõe reflexões sobre psicoeducação, saúde mental e física. Disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=l4T3Tzi9W7w

Acesso em 05/07/2024.

8h45

Os NERERs

Apresentação de slides contando a história dos NERERs.

Divulgação dos grupos de whatsapp.

Orientação sobre como formalizar as representações por escola.

C – P

Projeção de slides contendo fotografias, títulos e subtítulos narrando o processo de criação dos núcleos e ações implementadas.

9h05

Intervalo

Definição do tempo de intervalo

Exibição do videoclipe da canção “Oração ao tempo”.

P – P

Exibição do videoclipe “Oração ao tempo”, canção do compositor, escritor e intérprete Caetano Veloso. Disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=HQap2igIhxA

Acesso em 05/07/2024

Tabela 2 – Mapa do evento interacional encontro inter-regional abr./2022 (Continuação)

Evento principal

Hora

Temas

Ações realizadas

Espaço interacional

Materiais de apoio

ENCONTRO INTERREGIONAL

9h10

Bastão de fala

Exibição do vídeo “O perigo de uma história única”.

Explicação da dinâmica “Bastão de Fala”

Realização de dinâmica para ouvir os participantes do encontro.

Exibição do vídeo “Amoras.”

C – P

P – C

Exibição do vídeo com a palestra O perigo de uma história única, proferida por de Chimamanda Adichie no programa TED da Fundação Sapling.

Disponível em: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?subtitle=pt-br&language=pt-br

Acesso em 05/07/2024.

Projeção de slide com a imagem da boneca Abayomi e a explicação do significado do nome.

Exibição do vídeo com o livro “Amoras”, versão animada. Disponível no canal do Emicida, no link: https://www.youtube.com/watch?v=Avt7s8XgDjs

Acesso em 05/07/2024.

10h30

Política Municipal de Promoção da Igualdade Racial

Apresentação de slides sobre a Política Municipal de Promoção da Igualdade Racial.

C – P

Projeção de slides contendo informações sobre leis e normativas, ações implementadas e monitoramento da política.

11h05

Despedida

Retomando informações sobre a importância das representações por escolas.

Encerramento do encontro.

C – P

Legenda: C – coordenação ampliada. P – professores participantes
Fonte: Banco de dados da pesquisa etnográfica, 2022 a 2023

Com base no que foi evidenciado na análise do mapa do evento interacional, examinaremos de modo mais detido um exemplo de como era realizada a discussão dos temas propostos na formação. Para essa análise delimitamos o subevento empatia na tabela 2 acima. Nesse subevento, os participantes construíram discursivamente os significados de empatia e simpatia demonstrando estratégias de interpretação e formas de relacionar temas e realidades. A partir daí buscamos entender quando se discute sobre empatia e simpatia, o que as pessoas dizem a respeito e como esse debate remete a pauta racial.

Antes de apresentar o subevento, faz-se necessário contextualizar alguns aspectos que permearam à sua construção. No primeiro encontro formativo ocorrido em abril de 2022, as formadoras dos NERER precisaram lidar com uma situação de tensionamento que foi o retorno às atividades de ensino no formato presencial. Estar novamente na escola, em contato com os estudantes e demais colegas de trabalho, estava gerando muitas dúvidas e conflitos entre os participantes do evento.

À época, muitos fatores deixavam os profissionais da educação inseguros, citaríamos as implicações do contato face a face e o receio de contaminação, o uso de equipamentos de proteção individual, as definições acerca da vacinação de crianças, a formação de bolhas para atendimento dos estudantes etc., aspectos esses que posicionavam os professores contrários a algumas das determinações da Secretaria de Educação. Compreendendo que essas, entre outras questões, poderiam emergir no encontro formativo, a coordenação ampliada exibiu no momento inicial do encontro um vídeo de animação com o título “Empatia” que seria assistido e discutido tendo em vista essas tensões.

O vídeo está disponível em um canal do Youtube denominado “Janela da Alma Psicanálise”, segundo a descrição realizada no canal, a finalidade é refletir sobre psicoeducação em diálogo com as áreas da saúde física e mental. A animação encena situações demonstrando o que é empatia e o que é simpatia. Na representação visual abaixo, as primeiras cenas situam o espectador sobre o enredo, diferenciar empatia de simpatia.

Figura 2 – Representação visual de cenas do vídeo de animação Empatia

Fonte: Cenas retiradas do vídeo de animação Empatia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=l4T3Tzi9W7w. Acesso em: 05/07/2024.

Após essa introdução, as cenas que seguem mostram os personagens representando diferentes papéis, um urso que age de forma empática, uma raposa em processo de sofrimento psicoemocional e uma alce que demonstra atitudes de simpatia e não de empatia. No desenrolar das cenas apresenta-se para o espectador os resultados de uma pesquisa na área da enfermagem sobre profissões, realizada por Theresa Wiseman. Nela, a pesquisadora identifica quatro características relacionadas a empatia: i) entendimento de perspectiva, isto é, a capacidade de ter a perspectiva do outro e reconhecê-la verdadeira; ii) não julgamento independente de seu posicionamento; iii) reconhecimento das emoções em outras pessoas, demonstrando habilidade de nomear essa emoção para o outro e iv) sentir com as pessoas.

Figura 3 – Representação visual de cenas do vídeo de animação Empatia

Fonte: Cenas retiradas do vídeo de animação Empatia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=l4T3Tzi9W7w Acesso em: 05/07/2024.

O significado de simpatia proposto no vídeo dizia respeito as atitudes de atenuação de situações difíceis ou dolorosas e que geram sofrimento. Nessa perspectiva seria uma atitude recorrente entre as pessoas que tentam ver sempre um aspecto positivo mesmo nas piores situações.

Figura 4 – Representação visual de cenas do vídeo de animação Empatia

Fonte: Cenas retiradas do vídeo de animação Empatia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=l4T3Tzi9W7w Acesso em: 05/07/2024.

Realizaremos a seguir, o detalhamento do subevento empatia delimitado no horário 8h20 do mapa do evento interacional encontro inter-regional (Tabela 2), em que os integrantes da coordenação ampliada buscaram construir discursivamente, a partir do vídeo de animação descrito acima, o significado de empatia. O Quadro 1 está dividido em cinco colunas. A primeira delas mostra o tempo gasto em cada interação. A segunda coluna identifica os turnos de fala construídos pelos participantes da interação e as trocas que se sucederam.

A terceira coluna apresenta os discursos produzidos e as estratégias construídas para interpretar as cenas assistidas na sua relação com as relações interpessoais vivenciadas nas escolas. Os participantes do subevento empatia são identificados por letras que representam nomes fictícios. A transcrição dos discursos está segmentada em unidades de mensagem [1] [14]. A quarta coluna traz algumas notas descritivas contextualizando aspectos da interação, e a última coluna apresenta a legenda das letras utilizadas.

Quadro 1 – Subevento empatia

Tempo

Identificação dos turnos de fala

Discursos produzidos

Notas

Legenda

00:22

1

2

A: A gente precisa lembrar que foram dois anos para todo mundo / não é// essa nova interação tem trazido alegrias / tensões e dificuldades// algumas coisas que não aconteciam / voltaram a acontecer / as pessoas estão usando termos pejorativos / se apelidando// então a gente vai trabalhar isso que estamos vivenciando agora // um conceito que traduz bem o que a gente está precisando nas interações humanas/ que é o conceito de empatia// a gente precisa se aprofundar nele// na medida que estiverem assistindo/ pensem nas interações humanas dentro da escola//

M: pessoal/ o vídeo já está no ponto// ele é legendado / quem tiver dificuldade com a internet / vou colocar o link no chat também// eu vou parar aqui // travou um pouco mas deu pra ver // quem quiser manifestar aí fica à vontade //

Após compartilhar na tela o vídeo “Empatia” e solucionar alguns problemas técnicos, Antonieta faz uma breve contextualização do vídeo. Em seguida pede para os participantes comentarem tendo em vista as questões vivenciadas nas escolas.

A: Antonieta (integrante da coordenação ampliada)

M: Maria Firmina (integrante da coordenação ampliada)

00:27

3

P1: esse pequeno vídeo traduz muito essa chegada na escola // eu vi muita simpatia e pouca empatia// a rede [/] infelizmente a Secretaria não se preparou para receber os professores // consequentemente os professores também em função de todas essas questões foram muito simpáticos// mas a empatia de tentar entender o que o aluno trazia / o que o professor estava levando / isso está confuso pra mim até hoje//

Professora Nívea elabora uma compreensão de empatia a partir das relações nas escolas.

P1: professora Nívea

00:28

4

5

P1: eu fico observando os meus colegas/ observando os alunos / nós trabalhamos especificamente com a camada muito vulnerável em termo da área educacional / que é a educação de jovens e adultos // os meninos [/] os adolescentes / e aí o que eu percebo é isso / muita simpatia / muita simpatia / mas a empatia me faltava realmente qualificar o que está acontecendo na escola // esse vídeo me ajudou a entender o que está acontecendo// espero que com o decorrer do tempo a gente possa vencer essa barreira / tentar entender o que se passa efetivamente// obrigada pela atenção de vocês//

M: muito obrigada pela partilha Nívea/ se alguém mais [/]

Professora Nívea ao dizer “e aí o que eu percebo é isso, muita simpatia”, ela se refere a uma cena do vídeo que dizia que simpatia era a prática de tentar sempre encontrar algo positivo, mesmo em situações dolorosas. Na cena a personagem raposa conta que havia sofrido um aborto e a personagem alce que tinha atitudes simpáticas, responde que pelo menos ela sabia que podia engravidar.

P1: professora Nívea

Tempo

Identificação dos turnos de fala

Discursos produzidos

Notas

Legenda

00:25

6

7

J: eu concordo com a Nívea / a minha escola também tem esse contexto// eu fiquei pensando na [/] na questão do nosso núcleo mesmo aqui / do combate ao racismo né// eu fiquei pensando nessas questões / que envolve/ por exemplo/ essas ofensas/ esses apelidos / né// eu fiquei pensando que talvez no nosso contexto pode ter uma outra expressão / por exemplo / quando nós trazemos essa questão das ofensas / nós ouvimos assim / todo mundo sofre com apelidos// as pessoas não conseguem receber empaticamente as nossas demandas/ sempre colocando no lugar do universal//

M: obrigada Jorge// vocês trouxeram pontos bem diferentes [/] diferentes/ mas importantes//

Jorge apresenta uma outra perspectiva para se pensar o conceito de empatia.

Maria Firmina confirma que foram apresentados dois pontos de vista.

M: Maria Firmina (integrante da coordenação ampliada)

J: Jorge (integrante da coordenação ampliada)

00:27

8

9

M: Jade quer manifestar//

P2: eu acho que essa questão de contrapor então [/] esses conceitos é muito interessante / né // tanto que antigamente a gente nem falava muito em empatia / né// falava em simpatia / nossa fulana é tão simpático / e isso era bacana de ouvir// risos / eu lembro que todo mundo queria ser simpático e agora precisa ser empático// o que que a gente precisa pra tornar empático// essa que é a grande questão// nós estamos muito imediatistas / não tem tempo pra conversar / não tem tempo pra pensar//

Jade questiona o que era preciso para se tornar empático, provavelmente tentando problematizar que acreditava não ser possível considerando as perspectivas de empatia apresentada no vídeo e a forma como ela visualizava as atitudes das pessoas.

M: Maria Firmina (integrante da coordenação ampliada)

P2: professora Jade

00:31

10

11

A: eu quero fazer aí um link / né/ com o mês de abril / que é um mês de resistência dos povos indígenas né// da luta pelos direitos / dos territórios/ da cultura / da defesa dos saberes e [/] e eu acho que que isso aí que trata no vídeo né // a questão de ser empático tem [/] tem muita conexão com o bem viver né// que é essa conexão que eu acho que a sociedade ela vem perdendo né // e consequentemente a escola reflete isso de [/] uma forma muito forte// a gente se desconectou // o que permeia hoje a nossa vida / o tempo todo é o individualismo / é a corrida atrás de alguma coisa que a gente não sabe o que que é //

M: obrigada Antonieta / obrigada a todos por essas contribuições // vou retomar com a Neusa//

Antonieta apresenta um outro argumento para se compreender o conceito de empatia, associando a ideia de conexão.

A: Antonieta (integrante da coordenação ampliada)

M: Maria Firmina (integrante da coordenação ampliada)

Tempo

Identificação dos turnos de fala

Discursos produzidos

Notas

Legenda

00:42

12

13

14

N: gente quando eu vi esse vídeo eu pensei / nossa eu não sou empática // risos/ já levei muito com minhas atitudes/ e o vídeo mostra o quanto eu tenho de aprender//

M: oh Neusa / queria só reforçar a última fala da Jade / que aqui não se trata de não ser simpático/ mas de desenvolver a empatia// porque é importante que a gente saiba que elas são diferentes né// e a empatia ela exige uma imersão emocional / que a gente precisa dar conta dela / de estar com crianças e adolescentes nesses tempos / vai demandar que a gente seja forte pra isso//

N: exatamente// cuidar da dor do outro e cuidar da dor da gente//

Maria Firmina retoma argumento da professora Jade para reorientar sua compreensão sobre a proposta do vídeo.

N: Neusa (integrante da coordenação ampliada)

M: Maria Firmina (integrante da coordenação ampliada)

Legenda dos símbolos utilizados na transcrição: barra simples (/): unidades internas à unidade de mensagem de valor não conclusivo; barra dupla (//): fronteira entre unidades de mensagem de valor conclusivo. Fonte: Banco de dados da pesquisa etnográfica, 2022 a 2023

Essa forma de representação do subevento empatia visa demonstrar como as condições para uma potencial compreensão do significado de empatia foi desenvolvida interacionalmente pelos participantes envolvidos na interação. Observamos ao longo da interação o uso de diferentes estratégias de interpretação, visando construir um entendimento sobre o que era empatia e simpatia.

Para esse processo as participantes Nívea e Jade associaram os significados de empatia e simpatia às relações interpessoais observadas nas escolas. No turno de fala 3, Nívea utilizou o significado de empatia como capacidade de ter a perspectiva do outro e saber reconhecer as emoções, para isso ela exemplificou a situação dos estudantes da EJA, reconhecidamente àqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade social e, portanto, figuravam-se entre os grupos mais impactados pelo contexto da pandemia. Por esse motivo, Nívea compreendia que os professores não tiveram uma atitude empática quando deixaram de fazer um exercício de entendimento de perspectiva, ao não se colocarem no lugar desses estudantes.

Essa inferência é reforçada no turno 4 quando Nívea expande sua linha de raciocínio. Novamente ela exemplifica a partir de observações dos colegas de trabalho e dos estudantes da EJA. Para Nívea, os professores agiam com simpatia, o que no contexto do vídeo exibido significava ver sempre um lado bom em tudo, atenuando situações de dificuldades.

Jade, no turno de fala 9, também constrói os significados de empatia e simpatia considerando as relações interpessoais, ampliando essa visão não só em relação aos profissionais da escola, mas à sociedade em geral. Para ela o imediatismo, a dificuldade das pessoas de conversarem umas com as outras e a falta de tempo eram aspectos que se contrapunham a uma atitude empática. Nesse sentido, Jade visualizava as pessoas como simpáticas e acreditava ser essa uma característica positiva até o momento em que assistiu ao vídeo e teve uma outra compreensão.

Já para Jorge e Antonieta os significados de empatia e simpatia foram elaborados na sua relação com a questão racial negra e indígena. Jorge no turno de fala 6 propõe pensar outras possibilidades para o significado de empatia, ele diz “talvez no nosso contexto pode ter outra expressão”, o ‘nosso contexto’ refere-se a luta antirracista e ‘outra expressão’ foi utilizada no sentido de significar algo diferente do que foi apresentado no vídeo. Ele cita as situações de ofensas, xingamentos e que remetem aos casos de injúria racial, considerados pela legislação brasileira crime de racismo (Lei 14.532/2023). Segundo um levantamento realizado pelo Ministério Público Federal no ano de 2023, 90% dos casos de injúria racial não foram indiciados, o que levou Jorge a concluir que existe uma estratégia de “universalização”, em alusão ao princípio da igualdade como forma de fragilizar as pautas políticas dos grupos sociais negros.

Antonieta, no turno de fala 10, também associa o significado de empatia a pauta racial. Para ela ser empático está relacionado ao que ela denominou de bem viver, isto é, uma expressão utilizada pelos indígenas para demarcar um posicionamento político em defesa do planeta Terra. O que perpassa pela efetivação dos direitos de retomada de seus territórios ancestrais e de preservação de seus modos de vida. O movimento de retomada dos territórios que vem sendo organizado pelos povos indígenas se fundamenta nesse preceito do bem viver, ou seja, estabelecer a conexão com a natureza, em uma relação de respeito e equilíbrio. É nesse sentido que Antonieta compreende a empatia como um processo de conexão.

Conclusão

As análises apresentadas neste texto buscaram demonstrar como a questão racial vem sendo abordada nos processos de formação docente, com vistas a concretização de um projeto educacional antirracista. Por meio de um exame de eventos interacionais que correspondiam as principais atividades realizadas pelos NERER, foi possível acessar o modo de desenvolvimento dessas atividades e como essa organização orientava a construção de práticas pedagógicas antirracistas na RME-BH.

O estabelecimento de formações mensais, a perspectiva de formação entre pares e a valorização das práticas construídas pelos professores da rede eram princípios orientadores do grupo que potencializavam a efetivação das ações e a construção de uma política de formação continuada. Um outro aspecto evidenciado foi a seleção de temas, esses não eram definidos de forma hierarquizada, mas sim construídos coletivamente respeitando-se as especificidades de cada contexto de ensino, o que observamos na análise do evento interacional encontro inter-regional. Além disso, as maneiras variadas de articulação entre os temas, configuravam-se como estratégias para se oportunizar diferentes aprendizados sobre um campo tão complexo quanto o das relações étnico-raciais.

Assim, compreendemos que a política de formação continuada e em serviço instituída pelos NERER para a implementação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 nas escolas da RME-BH, demonstram possibilidades e desafios envolvendo a construção de um projeto educacional antirracista. Ainda assim, a estratégia de construção de núcleos de estudos desponta como uma forte possibilidade de se promover transformações profundas e perenes nas formas de conceber a escola e as práticas pedagógicas. Nesse sentido, acreditamos que a adoção de uma perspectiva de ensino intercultural crítica, descolonizadora e antirracista para o campo da formação continuada de professores se estabelece com um novo paradigma para a educação.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse de qualquer natureza.

Fontes de financiamento

Financiamento Próprio.

Contribuição dos autores

Concepção e desenho de pesquisa: Jesus ACU, Castanheira ML, Almeida EG; Coleta de dados: Jesus ACU; Análise e interpretação dos dados: Jesus ACU, Castanheira ML, Almeida EG; Análise estatística: Jesus ACU, Castanheira ML, Almeida EG; Redação do manuscrito: Jesus ACU, Castanheira ML, Almeida EG; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Jesus ACU, Castanheira ML, Almeida EG.

Referências

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3. Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” [Internet]. Brasília; 2008 [citado 2025 fev 09]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm

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14. Green J, Wallat C. Mapping instructional conversations – A sociolinguistic ethnography. Ethnography and Language in Educational Settings. 1981;5:161-205. [citado 2025 fev 09].

15. Gumperz JJ, Berenz N. Transcribing conversational exchanges. In: Edwards JA, Lampert M, editores. Talking data: transcription and coding in discourse research. New Jersey: New Lawrence Erlbaum; 1993. [citado 2025 fev 09].


1 Uma unidade de mensagem corresponde a uma unidade linguística significativa retirada de um continuo de fala. Elas são identificadas por parâmetros verbais, não-verbais, prosódicos e pistas de contextualização. Os marcadores utilizados na transcrição foram adaptados de adaptado de Gumperz [11] e Gumperz e Berenz [15], sendo eles, uma barra simples (/) e uma barra dupla (//) sinalizam, respectivamente, unidades internas à unidade de mensagem de valor não conclusivo e a fronteira entre unidades de mensagem de valor conclusivo.